Só pratica o bem quem zela pela
integridade das palavras e seu uso apropriado.
Noite dessas um comentarista
sociopolítico da TV criticou, com ênfase doutoral, o emprego de palavras como
“genocídio” e “genocida” para qualificar as consequências da desastrosa reação
do governo Bolsonaro à pandemia e seu macabro oficiante.
Só pratica o bem quem zela pela
integridade das palavras e seu uso apropriado. Certos vocábulos, de tão usados
fora do contexto original, arriscam-se de fato a perder sua força expressiva, a
debilitar seu sentido original. Não me parece o caso de genocídio; nem de holocausto,
outro frequente objeto de objeções puristas, que o tempo, com ajuda da
incorrigível crueldade humana, também se espichou como sinônimo de extermínio
de quaisquer pessoas ou povos.
(Para evitar melindres, o holocausto
original, que em hebraico é “Shoa”, passou a ser grafado exclusivamente com h
em caixa-alta.)
Genocídio, como vocábulo, só nasceu em
1943, inventado por um jurista polonês (e judeu), Raphael Lemkin, que duas
décadas antes já estudava o paradigmático massacre dos armênios pelo Império Otomano,
entre 1915-1923. Como é praxe há séculos, Lemkin juntou duas palavras gregas:
“genos” (família, tribo ou raça) e o sufixo “cídio” (morte), estabelecendo um
conceito de suma importância para os novos rumos do direito internacional, no
pós-guerra. No Brasil, o genocídio é crime previsto em lei (n.º 2.889) desde
outubro de 1956.
Em sua acepção castiça, genocídio é um
extermínio intencional, doloso, não um aniquilamento involuntário, culposo.
Como não existe uma palavra para definir morticínios motivados apenas ou acima
de tudo pela negligência e incompetência de governos e seus líderes, genocídio
quebra perfeitamente o galho. De mais a mais, não há por que melar a
brincadeira dos internautas que pespegaram no presidente o apelido de
“Genocida” e não foram, até agora, processados por calúnia, injúria ou
difamação.
Pausa para uma pequena digressão. Nunca,
na história deste país, um presidente da República foi tão farta e
continuamente achincalhado no exterior, nem, em solo pátrio, com apelidos de
variadas sílabas e pejorativas sonoridades – Bozo, Biroliro, Boçalnaro,
Capetão, Mijair, Minto, etc. – quanto o atual ocupante do Palácio do Planalto.
Uma marchinha carnavalesca grudou em
Artur Bernardes o apelido de “Seu Mé”; Getúlio ganhou um apelido carinhoso, “Gegê”;
JK também: “Pé de Valsa”. Já o marechal Castelo Branco, o primeiro mandatário
da ditadura militar pós-64, foi apenas o “Sem Pescoço”. Como se vê, nada que se
compare ao patrimônio antonomástico do atual presidente.
Getúlio Vargas foi muito caricaturado,
sempre de forma benigna, no rádio e no teatro de revista, onde chegou a ter
intérpretes fixos como Pedro Dias e Armando Nascimento, e, antes dele,
Washington Luís, encarnado pelo ator João de Deus. Oscarito bancou Dutra no
teatro e Getúlio no cinema, na comédia Nem Sansão Nem Dalila. Um clone de
Juscelino Kubitschek aparecia, sorridente e montado numa lambreta, no meio de
um número carnavalesco sobre Brasília cantado por Linda Batista na
chanchada Metido a Bacana. Nenhum deles foi achincalhado. E o mesmo se
diga de Sarney, Collor e Temer.
O álcool em gel semântico esfregado em
“genocídio” e “genocida” já fora utilizado, bem antes da pandemia, em outros
dois cognatos: “fascismo” e “fascista”. Com as mesmas explicações de
comentaristas políticos e mandarins do mundo acadêmico cujos pruridos
linguísticos acabaram paulatinamente desmoralizados pelas ideias e ações do
duce formado nas Agulhas Negras. Ideias que, diga-se, o franco Capetão jamais
escondeu ou disfarçou em sua carreira parlamentar, e menos ainda na campanha
presidencial.
Na véspera ou no dia seguinte à
escandalosa censura ao cartum (sem álcool em gel) de Aroeira, surpreendeu-me um
artigo publicado no jornal Valor, com o título de “Mea culpa, mea culpa,
mea máxima culpa”. Nele, Pedro Cafardo, editor executivo do jornal, fazia um
apelo a todos os Pilatos da República que, mesmo sabendo o que esperar do
candidato, ajudaram a elegê-lo, “quando a disputa democrática oferecia pelo
menos seis ou sete candidatos melhores que o eleito”.
Há hoje, no Brasil, uma extensa lista de
entidades e pessoas que precisam fazer o mea culpa pela escolha de 2018,
prosseguiu Cafardo, enfiando no mesmo saco “as elites brasileiras, do
agronegócio à indústria, passando evidentemente pelo setor financeiro”. E
detalhou: “Políticos influentes se omitiram na campanha eleitoral e deram um
‘dane-se’ ao País. Oportunistas, muitos deles se elegeram governadores e
deputados na sombra do candidato presidencial e agora viraram casaca como se
nunca o tivessem apoiado, sem uma palavra de arrependimento e desculpas”.
Não aliviou para ninguém: “Empresários
só pensaram no próprio quintal e passaram a aceitar ‘qualquer um’ desde que não
fosse do PT. Igrejas se animaram com o tom conservador e as ideias retrógradas.
Juízes e procuradores influenciaram o voto sem demonstrar constrangimento.
Jornalistas olharam para a economia e acharam que Paulo Guedes, o Posto
Ipiranga, com sua política liberal, poderia consertar o País. Mesmo que o
presidente continuasse andando por aí propagando teorias bizarras, feito
criança inconsequente”.
Jornalistas, insiste Cafardo, “não podem
fugir de suas responsabilidades. Muitos dos que hoje ferozmente expõem as
atrocidades presidenciais deveriam reler com distanciamento crítico o que
escreveram no passado recente”.
Não precisei reler o que escrevi. Só
lavo as mãos por necessidades sanitárias.
Autor:
Sérgio Augusto – Artigo publicado no Jornal O Estado de S. Paulo.
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