Governo não é técnico e Estado não é laico.
Positivismo, tão fundamental na criação da República Federativa do Brasil,
também se foi. Abandonado por seu líder máximo, país voltou para a Idade Média,
lamenta Thomas Milz.
Tempos de pestes sempre trouxeram um ar
lunático, com todos buscando um culpado pela praga. Na Alemanha, se reúnem
atualmente em praças públicas negacionistas de todas as causas, ativistas
anti-vacina, da extrema direita e extrema esquerda, e juntos se manifestam
contra a conspiração viral de Bill Gates e George Soros. Ainda bem que
representam uma minoria. E que a Alemanha – por enquanto – tem um governo
baseado na razão e na ciência, e não em likes das redes sociais ou vídeos de
youtubers.
Chama a atenção o fato de que países
governados por mulheres passaram com mais facilidade pela pandemia, a ver:
Alemanha, Finlândia, Noruega e Nova Zelândia. A alemã Angela Merkel é física, a
finlandesa Sanna Marin formada em Administração, a norueguesa Erna Solberg é
sociológica, cientista política e ainda economista, enquanto a neozelandesa
Jacinda Ardern é bacharel em comunicação política.
Por outro lado, os três países com mais
casos de coronavírus – Estados Unidos, Rússia e Brasil – são liderados por homens
de egos tão inflados que desprezam a ciência e os conselhos das vozes da razão.
Magnata, Czar e Messias: todos se achando invencíveis devido a um vírus, que
causaria uma "gripezinha". E estão pagando o preço da prepotência,
por terem abandonado o caminho da ciência em favor de ideias obscurantistas,
que misturam superstição com uma dose de pseudo-religiosidade. Minto. São os
cidadãos desses países que estão pagando o preço, em milhares de mortes.
"O vírus tá aí, vamos ter de
enfrentá-lo, mas enfrentar como homem, pô, não como moleque", disse o
presidente do Brasil. Para isso, promoveu um dia de oração contra o vírus,
medida muito superior ao isolamento social feito nos países governados por
mulheres. Depois da tentativa das orações, veio o remédio milagroso, revelado
pelo Messias (é óbvio que o messias deve apresentar o milagre, para justificar
seu nome): a cloroquina, um medicamento sem eficácia comprovada, como o próprio
presidente admite. Mas, "pior do que ser derrotado é a vergonha de não ter
lutado", segundo Jair Bolsonaro. Orem e, depois, morram como heróis,
bravos brasileiros!
Havia a falsa esperança (e promessa) de
um governo técnico, sem ideologia. Mas na área de saúde, onde mais se precisa
de liderança técnica, os ministros técnicos foram dispensados por terem feito
uma gestão meramente técnica. E por não terem defendido as ideias messiânicas
do presidente.
Há no mundo três líderes defendendo o
uso da cloroquina:
1.
O magnata Donald Trump, que, depois de aconselhar as pessoas a tomarem uma
injeção de desinfetante contra o vírus, agora disse tomar cloroquina como
profilaxia.
2.
O maquinista de metro Nicolás Maduro, líder da Venezuela, que já disse que seu
falecido tutor Hugo Chávez lhe aparece em forma de passarinho. Se tal
acontecimento se realizou depois de ele ter tomado a cloroquina, não se sabe.
3.
O capitão reformado Jair Messias Bolsonaro, que, como deputado, liderou o
projeto para aprovar a fosfoetanolamina sintética, a chamada "pílula do
câncer". O produto, ainda sem a eficácia comprovada, foi barrado pelo
Supremo Tribunal Federal (STF).
O Ministério da Saúde está agora
interinamente nas mãos de um general com vasta experiência em logística, mas
sem experiência na área de saúde. Foi ele que, finalmente, seguiu o desejo do
presidente de incluir a cloroquina e seu derivado hidroxicloroquina no
protocolo de tratamento para pacientes com sintomas de coronavírus. Mesmo
admitindo que não há comprovação da eficácia. Fica a dica do presidente:
"Quem é de direita toma cloroquina, quem é esquerda, tubaína".
Seria cômico se não fosse trágico. Mas,
para ser sincero, já estava claro desde o começo que não se podia esperar muita
coisa desse governo, muito menos políticas sérias baseadas na ciência e na
razão.
Há, no entanto, uma grande decepção com
a ala militar do governo. Esperava-se dela segurar as loucuras da ala
ideológica. Afinal, há uma longa tradição científica dos militares brasileiros.
Houve uma época em que eles lideraram a marcha da modernidade, hasteando a
bandeira do positivismo, do lema "Ordem e progresso". Defenderam a
ideia de que o conhecimento científico deveria ser a base da sociedade e não as
orações e remédios milagrosos. O Brasil voltou para a Idade das Trevas.
Autor: Thomas
Milz tem mestrado em Ciências Políticas e História da
América Latina, jornalista e fotógrafo do Bayerischer Rundfunk, agência de notícias KNA e o
jornal Neue Zürcher Zeitung.
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