Ilustração Sebastian Thibault
Sejam quais forem nossas convicções
ideológicas, acumulam-se, nos últimos tempos, elementos que colocam em xeque a
confiança nos sistemas políticos ocidentais - com todas as suas
particularidades e sistemas democráticos. Em momentos críticos como o que
vivemos atualmente em inúmeros pontos do mundo, é na reflexão política
desenvolvida por grandes intelectuais que buscamos alguma perspectiva
diferente, vislumbramos possíveis saídas e soluções para a crise generalizada. Francis
Fukuyama, cientista político de alto nível de erudição na área da literatura,
baseou a maior parte de sua obra na discussão sobre diversos regimes políticos,
levando sempre em consideração um amplo panorama histórico.
Sua obra mais conhecida, O fim da
história e o último homem, lhe rendeu destaque mundial e foi traduzida para
mais de 20 idiomas. Além do best-seller, as duas publicações mais recentes
do cientista político, As origens da ordem política – Dos tempos pré-humanos
até a Revolução Francesa e The origins of political order – From the
Industrial Revolution to the globalization of democracy - ainda sem
tradução para o português - revisam a cronologia do desenvolvimento sociológico
e político internacional até os dias de hoje, buscando entender de que forma a
democracia entrou em descrédito.
Além de um longo currículo de estudos na
área das ciências políticas, Francis Fukuyama teve contato direto com a
questão, tendo atuado no planejamento político do Departamento de Estado nos
Estados Unidos, e como membro do Fórum Internacional para Estudos Democráticos.
Em artigo publicado no jornal O Estado de São Paulo, Rodrigo de Lemos, doutor
em Letras, analisa e reflete sobre a obra de Fukuyama, buscando situar o
momento político do Brasil em relação a outros países, e perante as tendências
apontadas pelo intelectual.
O destino intelectual de Francis
Fukuyama deve conter penas e prazeres em igual medida. Lançar uma tese (“O fim
da História”) que, achatada em slogan, define uma época; cruzar o globo
palestrando; ser resenhado por veículos que contam – eis o sonho do intelectual
público. Ninguém, entretanto, é obrigado a explicar-se tão constantemente
quanto ele, nem tão em vão, a uma audiência por vezes sarcasticamente
rebarbativa a qualquer nuance. Uma bomba explode em um recanto do Oriente
Médio; um tiranete asiático ameaça um potentado ocidental, e alguém fatalmente
há de lembrar o quanto a História está longe de diluir-se no tédio do tout
marché e da democracia universal.
The End of History and the Last
Man (1992) acarretou essa ambígua popularidade ao seu autor por responder
à conjuntura histórica de dissolução do bloco soviético. Os dois longos e
eruditos volumes de Political Order and Political Decay não lhe
valerão provavelmente a mesma audiência; o timing, entretanto, segue
preciso; eles vêm a lume em um momento em que as democracias ocidentais
aparentam ter cruzado há muito o seu zênite. O objetivo, explicar por que
algumas sociedades penam a “chegar à Dinamarca”, construindo ordens políticas
estáveis e sociedades livres, prósperas, razoavelmente igualitárias. Em outra
nota, o livro se propõe analisar por que a über-democracia americana não
cessa de dar sinais de estiolamento.
O volume inicial, From Prehuman
Times to the French Revolution (2011), debruça-se sobre a primeira dessas
questões. Três pilares sustentariam a ordem política democrática: um Estado
moderno eficiente, esteado em uma burocracia impessoal, especializada,
formalizada e hierárquica; o império da lei, frequentemente decorrência da
pressão de classes sacerdotais que reportam a autoridade terrena a uma esfera
transcendente ao governante; finalmente, a accountability, a
responsabilidade e o compromisso dos governantes quanto aos governados.
Em polêmica aberta com o marxismo, que compreende
a modernização como um único salto qualitativo, Fukuyama reforça o quanto, na
história humana, o surgimento desses três pilares nada teve de inevitável, nem
se implicaram eles entre si. Se sociedades como a inglesa foram afortunadas ao
serem precoces na modernização, a China imperial, por exemplo, foi pioneira em
criar uma burocracia eficiente, mas nenhum mecanismo formal de legalidade ou de
responsabilidade quanto aos governados contrabalançava o poder do imperador,
para além de sua educação como bom governante.
Daí a proposição por Fukuyama de uma
tipologia das sociedades segundo sua ordem política. Já vimos os extremos dos
casos chinês e inglês. A Índia conheceu cedo formas assemelhadas ao rule
of law e à accountability dadas sua organização social e a
influência da casta bramânica, mas falhou em desenvolver uma burocracia
eficiente. Os absolutismos francês e ibérico nunca o foram plenamente quando
comparados aos despotismos chinês ou russo; a obra centralizadora de um
Richelieu ou de um Filipe II foi mais a de uma conciliação da Coroa com as
elites antagônicas do que, como no caso oriental, a definitiva submissão destas
por aquela (como a empreendida pelos Han ou por um Pedro, o Grande). Se os reis
latinos contrabalançados por suas aristocracias foram
mais accountable e menos despóticos que suas contrapartes na Eurásia,
o Estado perdeu em eficiência, tornando-se grande, corrupto e, finalmente,
frágil.
Aliás, é nessa relativa fragilidade do
Estado ibérico que Fukuyama, em um capítulo que nos interessa particularmente,
situa as raízes da instabilidade latino-americana. As práticas pouco
republicanas que povoam nossos jornais não soariam estranhas às cortes dos
Joões ou dos Bourbons setecentistas. Na sanha de financiar-se, essas monarquias
patrimonializaram seus Estados, permitiram sua alienação a elites por meio de
cargos venais, o que retardava sua burocratização meritocrática. Com a
transposição da máquina administrativa para além-mar, o patrimonialismo teria
migrado igualmente para as Américas, resistindo enquanto as antigas monarquias
europeias se modernizavam em graus diversos, às vezes por meio da violência
(como na França). Raymundo Faoro não estaria de todo em desacordo com a
análise, que tem o mérito de apreciar a América Latina e suas mazelas não como
um outro com relação ao Ocidente, mas como sua extensão atávica. Álvaro Vargas
Llosa, outro liberal que parece ter lido Hegel, já descreveu a América Latina
como o Ocidente antes do Ocidente.
No segundo volume, From the
Industrial Revolution to the Globalization of Democracy (2014), Fukuyama
acompanha a evolução da ordem política primeiramente no núcleo duro do Ocidente
(a França e as reformas napoleônicas; a Inglaterra e a introdução da
meritocracia no serviço público com o relatório Trevelyan-Northcote), depois
sua expansão à periferia do sistema (Alemanha e Japão), suas repercussões na
Ásia, até chegar à sua realização maior na democracia americana, nela
apresentando os sintomas precursores da decadência. Uma consolidação e uma
expansão da democracia liberal que são para Fukuyama uma guerra
entre natura e cultura; os homens tendem biologicamente a
privilegiar os laços pessoais, garantindo vantagens a família e amigos; ora, a
ordem política moderna implica uma certa impessoalidade ao postular o pertencimento
em mesmo título de todos os seus membros. A tentação patrimonial ronda a
democracia e a corrói; décadas depois das reformas progressistas que se
seguiram ao populismo jacksoniano, os Estados Unidos parecem a Fukuyama
regressar ao clientelismo e à patronagem, em um processo que ele nomeia
“repatrimonialização”, com a alienação da função pública a elites e a grupos de
pressão. Estamos distantes da fé otimista na inevitabilidade dos progressos
históricos que se atribui a Fukuyama, discípulo de Kojève.
Fukuyama está igualmente longe de ser o
cantor beato da democracia liberal que se supõe. Haveria para ele uma
incongruência latente na ideia de um Estado democrático; enquanto Estado
burocrático, sua função executiva é preponderante como fonte de sua legitimidade;
enquanto democracia, são-lhe imprescindíveis os mecanismos de consulta à
sociedade. O descompasso entre essas suas duas dimensões, executiva e
deliberativa, está sempre a dois passos, e nos Estados Unidos teria se tornado
um empecilho maior à ação estatal, suscetível de conduzir à sua decadência.
Nada garante, salvo a fé no poder de discernimento das massas, que a decisão
democrática seja de fato a melhor. Em uma democracia disfuncional, essa dúvida
só faz crescer, podendo deslegitimar o sistema. No caso americano, a democracia
sequestrada por lobistas e por grupos de pressão nos tribunais e nos partidos
teria se volvido uma vetocracia, ameaçando-a de morte por inércia.
O pessimismo desse diagnóstico não
significa um rompimento absoluto com a visão historicista. A superioridade por
assim dizer in abstracto do Estado democrático moderno segue
inconteste, e sua proeminência não é seriamente desafiada por formas mais
primitivas de organização social. Muito mais do que as forças alienígenas que
são os despotismos modernos ou o fundamentalismo religioso, é a própria
senescência da democracia liberal que a poria em xeque onde está consolidada.
Por outro lado, brilha uma nota auspiciosa para as democracias recentes como a
brasileira. O desenvolvimento político exposto por Fukuyama nos lembra que
Estados Unidos, Inglaterra e França já foram sociedades flageladas pelo
patrimonialismo e pela corrupção. Reformas do Estado conduzidas sob pressão de
uma classe média que emergia na cena política movida por um zelo moralizante
contribuíram ao seu saneamento. Alguma analogia com o Brasil contemporâneo sob
o império da famosa República de Curitiba? É impossível prever o que dará o
processo brasileiro – mas é importante a esperança em meio aos escombros de um
sistema político.
Autor: Francis Fukuyama – Publicado no Fronteiras do
Pensamento.
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