O uso
indiscriminado de herbicidas durante a Guerra do Vietnam mostra que cinco
décadas não foram suficientes para apagar o imenso desastre ambiental, bem como
a catástrofe humana que se instalou naquela região.
Chama atenção a velocidade da liberação dos registros dos “fitossanitários” ou “defensivos agrícolas” esse ano no país. Fonte: Google
No
livro “Um Discurso sobre as Ciências”, de autoria do professor Boaventura de
Souza Santos, o qual dispensa qualquer tipo de apresentação, sobressai-se o
seguinte tópico interessante e instigante: todo conhecimento científico-natural
é científico-social. Lembrei-me imediatamente dos negacionistas, os quais
poderiam muito bem se inserir, alguns deles é claro, na categoria dos
ignorantes especializados, expressão utilizada pelo professor Boaventura em seu
livro, a qual faço uso aqui. Mas não pretendo me ater nem aos terraplanistas e
nem àqueles que negam qualquer alteração climática em curso decorrente da ação
humana.
De
acordo com uma matéria publicada semana passada no Jornal Nexo, até o início de
março desse ano, ao menos 58 produtos relacionados aos agrotóxicos tiveram sua
liberação formalizada mediante publicação no Diário Oficial da União. A tomar
pela velocidade da permissão dos novos registros, os novos pedidos de liberação
devem estar de vento em popa.
A ideia
aqui não é polarizar e nem criminalizar a discussão em torno do uso dessas
substâncias, sendo algumas destas inclusive necessárias, pelo menos até o
momento. Por outro lado, a liberação e o uso indiscriminado, em especial
daquelas substâncias reconhecidamente tóxicas ou ainda daquelas que carecem de
mais estudos, são incompatíveis com a sustentabilidade ambiental e social da
agricultura.
O legado tóxico deixado no Vietnam ainda não expirou. Fonte: Google
Passados
mais de 50 anos da Guerra do Vietnam, diversos estudos de cunho
científico-social tentam medir, entender e compreender as consequências
nefastas da estupidez humana pelas milhares de toneladas de herbicidas na
verdade um arco-íris destes, dentre os quais o mais conhecido fora o
agente laranja ̶ pulverizados
sobre as florestas e plantações do lado sul daquele país. Essa fora a estratégia
adotada para destruir a folhagem que os guerrilheiros usavam como cobertura,
bem como as colheitas que os alimentavam.
O
agente laranja, o qual era armazenado em tambores cuja identificação era feita
por faixas laranja, era na verdade uma mistura de dois herbicidas, o 2,4-D e o
2,4,5-T. Esse agente desfolhante continha além dessa mistura, traços de
dioxina, um subproduto da fabricação do 2,4,5-T. As dioxinas são poluentes
orgânicos persistentes cuja toxicidade para os seres vivos é altíssima, mesmo
que em baixíssimas concentrações. Além da população local, muitos soldados
americanos, hoje veteranos daquela guerra, também não ficaram imunes aos
efeitos tóxicos desse agente. Naquela ocasião, como quase sempre ocorre, a
cortina de fumaça ideológica serviu para tentar mascarar os interesses escusos.
De tempos em tempos esse artifício volta à tona, convencendo, incrivelmente,
milhares de pessoas.
Sem consciência científico-social, sobram-nos tragédias coletivas. Fonte: Google
O fato
é que mais de cinco décadas não foram suficientes para apagar o imenso desastre
ambiental, bem como a catástrofe humana que se instalou naquela região, tanto
nos aspectos relacionados à saúde, quanto econômicos, como
socioculturais. Parece até que a política da precaução passa a
vigorar, apenas, depois desses eventos cujas consequências são
dramáticas.
Parece
até que só após eventos como esse se passa a presumir que possíveis
defeitos congênitos e doenças como câncer podem de alguma forma guardar relação
com tais substâncias, independentemente de serem misturas ou não, como é o caso
do agente laranja. Em algumas ocasiões, chega-se às conclusões que
eventualmente podem servir de base para possíveis indenizações.
Porém,
normalmente tais indenizações compensatórias “beneficiam” apenas as gerações
subsequentes, porque as atingidas, muitas vezes, já sucumbiram diante do mal
sobre o qual ousaram lhe atribuir culpa. Após ocasiões como essa, fala-se até
em remediação ambiental. Imagina só quanta ousadia e petulância a favor do meio
ambiente!
Ao que
parece, as últimas décadas de estudos científicos, em especial aqueles de
caráter epidemiológico, reforçaram, “apenas”, o campo das evidências. Se para
os negacionistas, os fatos não servem, quem dirá as evidências. E dessa forma,
todo o nosso conhecimento científico-natural desvencilha-se do
científico-social.
Quem
sabe no decorrer de mais cinco décadas, com evidências mais robustas a respeito
dos produtos liberados recentemente, adotem-se esses “termos esquisitões” como
precaução, remediação ambiental e indenizações, como se faz com o agente
laranja. Quem sabe!
Quem
sabe até lá essa turma do sanatório geral já não tirou o seu bloco da rua. Quem
sabe!
Autor: Thiago Jucá
é biólogo, doutor em Bioquímica de Plantas e empregado da Petrobrás.
Artigo publicado no site Nossa Ciência.
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