Costumes
de uma sociedade tolerante são condenados. Já se pediu até a censura.
Era 6 de setembro de 2018. Na esquina da
Rua Batista de Oliveira com Halfeld, em Juiz de Fora, a população carregava nos
ombros o segundo colocado nas pesquisas eleitorais para a Presidência,
candidato peculiar, sem partido, sem dinheiro, com discurso homofóbico,
misógino, xenófobo, personagens de programas populares, por conta das
declarações incomuns e bombásticas.
Apesar de escoltado por agentes da
Polícia Federal, um desempregado, Adélio Bispo de Oliveira, dizendo-se a mando
de Deus, seguiu o cortejo com uma faca de cozinha na mão embrulhada num jornal.
A confusão era enorme. Em torno do candidato, ecoavam gritos de “mito”.
Muitos filmavam e tiravam fotos daquele
até meses antes desconhecido e irrelevante no cenário político, deputado
federal que se tornava uma celebridade por conta do discurso agressivo e
anacrônico, que surpreendentemente enaltecia a tortura dos tempos da ditadura e
dizia que os militares mataram pouco.
Adélio tentou por trás. Não conseguiu.
Deu a volta. Ficou de frente. O relógio marcava 15h40. Deu uma estocada rápida,
certeira. A vítima gritou, inclinou-se, desabou. E mudou a história do País.
Como se cortasse a artéria do ódio e da insanidade que circulavam entre grossas
paredes e jorraram como um poço de petróleo descoberto.
Então, o leitor para aqui e começa: Ele
é petralha, de esquerda, preferia o roubo do PT? Assim, o debate se mantém na
chapa fina da guerra ideológica. Não sou petralha, sou de esquerda, e também
considero escandaloso o que se faz na Petrobrás, JBS, Odebrecht e tantas
outras, num Estado gerador de propina, por conta da dependência do setor
privado a ele.
Em 6 de setembro, o efeito foi imediato:
quem estava na dúvida, ganhou certezas, quem queria um Brasil diferente,
encontrou seu voto, quem não acreditava nas instituições, achava todas elas
corruptas, vestiu a camisa. A facada lesionou a veia mesentérica superior, o
intestino grosso e delgado. A vítima perdeu quase a metade do seu sangue. Se
fosse centímetros mais à esquerda, morria. O Brasil perdeu o bom senso.
O roteiro era perfeito demais para ser
verdade. Surgiram dúvidas. Um vídeo, A Facada no Mito, viralizou. Muitos se
lembraram do atentado contra o também verborrágico e também em campanha (para
deputado federal) jornalista Carlos Lacerda, em 5 de agosto de 1954, na Rua
Tonelero, Rio de Janeiro, um crítico agressivo e contumaz, mais letrado, do
presidente Getúlio Vargas. Lacerda sobreviveu. Assim como a polarização. Seu
ajudante, major Vaz, não.
Outra vítima foi o próprio Getúlio, que
se matou 19 dias depois. Na investigação, os culpados apontavam para gente do
Palácio do Catete, especialmente o chefe da sua segurança, Gregório Fortunato,
e o filho (sempre eles) Lutero Vargas.
O gesto dramático de Getúlio manteve
aliados políticos no poder por um tempo. Juscelino Kubitschek debelou duas
tentativas de golpe. João Goulart não teve a mesma sorte. O atentado em 1954
reverberou por dez anos, até culminar numa impiedosa ditadura cívico-militar.
A facada nos trouxe de volta a cultura
dos tempos de chumbo, que a maioria abomina. Um artificial patriotismo é
exaltado. Brasil Acima de Tudo tem uma levada fascista, que considera que o
Estado é superior ao cidadão (Deutschland über alles). Costumes de uma
sociedade progressista e tolerante são condenados. Já se pediu até a censura.
Alimenta-se um discurso de ódio inédito na nossa história, praticado por
assessores palacianos.
Imprensa, mídia, movimentos sociais,
ideias de igualdade de gênero, casamento do mesmo sexo, o contraditório e o
futuro foram atacados. Madeireiros colocaram fogo na Amazônia. Governantes
culparam ONGs. Culparam o Green Peace por um vazamento de óleo. Garimpeiros
invadem reservas indígenas e o meio ambiente. Lideranças são mortas. A mulher
do presidente francês, destratada. Perguntou-se a um descendente de asiáticos:
“Tudo tão pequeno por aí?”.
“Você tem uma cara de homossexual
terrível”, foi dito a um jornalista. A adolescente ambientalista virou
pirralha, e Paulo Freire, energúmeno. A grosseria se estendeu para o presidente
da OAB, cujo pai é desaparecido político, o trabalho infantil, nordestinos,
chamados pejorativamente de paraíbas. O presidente disse que não tinha fome no
País, defendeu um filtro na Ancine, criticou a jornalista Miriam Leitão. Sobrou
até para o Inpe, cientistas, veganos. Incentivou o turismo sexual. Tudo isso
durante o mandato. “O Brasil não pode ser um país do mundo gay, temos famílias,
pô.”
Em seu governo, universidades viraram
plantações extensivas de maconha, Fernanda Montenegro, sórdida e mentirosa, o
País foi o único que obstruiu o acordo da conferência sobre o clima, COP25, o
prefeito de Nova York foi chamado de “toupeira”, a monarquia foi enaltecida, o
Dia da Consciência Negra, criticado, os ditadores Stroessner (“um homem de
visão”) e Pinochet, elogiados, o novo governo argentino, debochado, o
Holocausto contra os judeus, perdoado, e o AI-5 foi chamado de volta. Danem-se
os escrúpulos.
Recentemente, um mineiro e um paraense
foram vistos em lugares públicos com suásticas nos braços. No domingo, o
aposentado Adel Abdo foi preso em flagrante depois de disparar três vezes com
um revólver calibre 22 no contador Rafael Dias, seu vizinho. Segundo
testemunhas, teria dito: “Viado tinha que morrer”. O feminicídio vira
epidêmico.
“Este é um governo absolutamente
agressivo, que cria um clima horroroso no País. Tudo que é ligado à ciência e à
arte está sendo demonizado. Artistas, cientistas e professores sofrem um
bombardeio diário de mentiras, de assassinatos de reputações. O grupo que está
no poder quer calar as vozes dissonantes”, disse Marcelo Adnet, humorista
vítima de seguidores do presidente, à Folha de S. Paulo.
O Brasil vive sob ataque, precisava de
um homem equilibrado, agregador, que respeitasse as diferenças e defendesse as
instituições. Ganhamos o inverso. Numa facada que ainda jorrará muita bílis.
Autor:
Marcelo Rubens Paiva – Escritor, dramaturgo, roteirista, há anos trabalha na
imprensa como cronista do mundo contemporâneo, de olhos atentos a política,
cultura, neuroses urbanas de hoje e do passado. Artigo publicado no jornal
Estadão.
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