"O
bicho-homem, em sua infinita capacidade de autodestruição, acaba de inventar a
máquina de produzir 'fake news', derivada da associação entre Inteligência
Artificial e notícias falsas. Quem já viu este 'animal' em ação ficou
impressionado”.
Sabe
a verdade, aquela base sólida sobre a qual se construiu a civilização, que
serviu de condição para a assinatura dos tratados de divisão da Terra, como o
de Tordesilhas, que rachou o mundo no meio e deu um pedaço para Portugal e outro
para a Espanha? A verdade, aquela que era a fiadora dos acordos de paz ao final
dos conflitos – quando as partes diziam: “Tudo bem, fica o dito pelo não dito,
a guerra acabou, vamos cuidar da vida”?
Pois
é: a verdade, que permitiu a um homem confiar em outro homem – “Se o senhor diz
que é verdade que tenho um tumor no cérebro e só com uma cirurgia vou ficar
curado, eu deixo o senhor abrir um buraco na minha cabeça para retirar o
tumor”; ela mesma, a verdade, que está na base da investigação científica, e
que vem sendo aperfeiçoada ao longo dos séculos, a cada avanço na pesquisa, a
cada descoberta, a cada novo instrumento de prospecção da realidade. Pois é:
-
A verdade... acabou.
Enquanto
a mentira veste as calças
É
doloroso ter de reconhecer um acontecimento tão devastador, mas a verdade
simplesmente deixou de existir, e vamos ter de conviver daqui pra frente sem a
ajuda dela, sem a certeza que ela nos oferecia, sem a segurança que nos
garantia seguir em frente, prosseguir, avançar, alcançar. A verdade acabou.
O
mais curioso é que acabou por meio do mais formidável avanço da humanidade ao
longo dos milênios da civilização. A internet matou, aniquilou, extinguiu a
verdade. Hoje, privados dela, todo dia nos resignamos a viver sob o império de
sua mais tenaz adversária – a mentira, que ganhou dela e se impôs como a mais
nova realidade de nosso tempo.
Claro,
claro: isso que hoje se chama de “fake news” sempre existiu. Apenas não era
difundida com o poder de turbinamento da internet, que permite a distribuição
de uma mentira para todo o planeta em fração de segundos. Churchill dizia que a
verdade dá uma volta completa na Terra enquanto a mentira veste as calças. E
disse isso bem antes da internet, que nunca foi sonhada por um Júlio Verne, um
Einstein, um Newton ou um Leonardo da Vinci.
Mais
letal que a peste bubônica
Mas
a praga das “fake news”, possivelmente a maior epidemia de toda a história do
homem sobre a Terra, está vencendo e vencendo rapidamente a corrida com o que
resta de verdade. O grau de sofisticação das “fake news” chegou a tal ponto que
tornou-se apenas impossível distinguir a verdade da mentira. Os instrumentos de
combate ao mal das informações falsas revelam-se diariamente incompetentes para
o enfrentamento de um monstro de mil tentáculos e milhões de faces. Um vírus
letal que até poderia ser comparado ao vírus da dengue – que precisa do apoio
da população para seu combate. Mas que é muito mais perigoso, porque não se
sabe de alguém que crie propositalmente o mosquito Aedes Aegypt. Mas pipocam por
aí os que recebem e distribuem bilhões de vezes informações que eles próprios
sabem ser falsas. Ou seja: o monstro é alimentado pelos únicos que teriam poder
real para combatê-lo.
Tudo
indica que o enfrentamento ao mal das “fake news” terá de ser feito simultaneamente
em várias frentes, que vão desde o aperfeiçoamento dos mecanismos de detecção,
a modernização do aparato jurídico, o apoio à pesquisa sobre o tema e,
sobretudo e principalmente – a formação de uma consciência crítica por meio da
qual se comece a por um freio no compartilhamento irresponsável de informações
de difícil comprovação ou comprovadamente falsas, mas que confirmam crenças e
valores de quem as recebe. Agências de “fact-checking” como a Lupa, a e-Boatos
vêm prestando relevante e necessário serviço no combate ás informações
mentirosas. Mas seu trabalho já vem sendo objeto de contestação pelos que
apontam nelas a influência de grupos dos mais variados tipos de interesses que
vão dos financeiros aos ideológicos, passando pelos que se alimentam do
fanatismo em relação às pautas de costumes.
A
última pá de cal na verdade
O
quadro fica ainda mais dramático quando se depara com uma dificuldade básica: a
de se conseguir dar uma definição à expressão “fake news”, tamanha a variedade
de formatos que elas ostentam. Antes, limitavam-se aos textos escritos. Hoje,
avançam em fotografias manipuladas e falsas imagens em movimento. A tecnologia
atual permite um grau tão elevado de manipulação que tornou possível por na
boca de qualquer pessoa um texto com sua voz original, seus trejeitos, seu
rictus facial e seu sotaque.
A
última pá de cal na cova da verdade foi dada por uma criação devastadora: uma
nova tecnologia com potencial de “jogar na obsolescência tudo o que existe por
aí”, expressão usada pelo jornalista Carlos Rydieswski, do jornal Valor
Econômico, na reportagem sobre o tema. Trata-se de um software com inimaginável
poder de destruição – o GPT-2, capaz de redigir textos de maneira autônoma e
com elevadíssimo grau de fidedignidade para quem os lê. Mas, diferentemente das
outras tecnologias, sempre disponibilizadas ao público, desta vez os códigos do
novo programa não foram liberados pelo receio do altíssimo “potencial
destrutivo” do invento, como justificou Jack Clark, um dos dirigentes da
OpenIA. IA são as iniciais de Inteligência Artificial. A OpenIA é uma
organização sem fins lucrativos, com sede em São Francisco, Califórnia, que
desenvolveu a engenhoca capaz de gerar narrativas altamente verossímeis, mas
inteiramente falsas.
E
você, leitor? Tem certeza de que você é real?
Ou
seja: o bicho-homem, em sua infinita capacidade de autodestruição, acaba de
inventar a máquina de produzir “fake news”, derivada da associação entre
Inteligência Artificial e notícias falsas. Quem já viu este “animal” em ação ficou
impressionado. Só como exemplo, o software foi abastecido com as seguintes
informações: “Um vagão de trem com material nuclear foi roubado em Cincinnati.
Seu paradeiro é desconhecido”. A partir disso o GPT-2 redigiu um artigo de sete
parágrafos (!) que incluiu até “declarações” de agentes do governo. Tudo
crível. Tudo falso. A mutreca é capaz de igualmente produzir a partir da
Inteligência Artificial imagens insólitas, mas críveis.
Melhor
parar por aqui. Quem pode garantir, neste momento, que fui eu mesmo quem
redigiu este artigo? Sim, porque a verdade acabou para todo mundo, inclusive
para mim e para você. Pensando bem, leitor: será mesmo que você existe ou é
criação de um software malicioso como o OpenIA?
Autor: Paulo
José Cunha é professor, jornalista e escritor. Publicado no Congresso em Foco
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