O povo que
aplaude e continua encantado pelos desplantes do presidente López Obrador
compreenderá que a era dos caudilhos deve ficar para trás.
Fernando Vicente
No auditório da Universidade de Guadalajara,
sob o espetacular mural de José Clemente Orozco contra o fanatismo ideológico,
acabam de serem realizadas três mesas-redondas com a participação de 15
intelectuais mexicanos – talvez os mais eminentes do país –, que, diferenças
entre eles à parte, manifestaram sua preocupação com guinada que a política
mexicana vem dando desde que Andrés Manuel López Obrador assumiu a
presidência.
Héctor Aguilar Camín, escritor,
jornalista e diretor da revista Nexos, advertiu que, tanto em suas
iniciativas como em suas intenções, o mandatário parece ter posto em marcha a
construção de uma estrutura mais pessoal e permanente, que as instituições
democráticas mexicanas, recentes e frágeis, não estão em condições de resistir.
E o historiador Enrique Krauze, diretor da Letras Livres, que foi vítima
de uma recente campanha de descrédito e intimidação por suas críticas ao
Governo, insistiu no risco de que “o messias tropical” – assim chamou o novo presidente
em um célebre ensaio – esteja operando de tal modo que possa cruzar as linhas
vermelhas da democracia mexicana para continuar no poder, por via direta ou por
pessoa interposta, uma vez terminado seu mandato (a Constituição do México não
permite a reeleição).
Este temor acabou sendo longamente
compartilhado, com muitos matizes de diferença, pelos participantes, entre os
quais havia escritores, juristas, políticos e defensores dos direitos
humanos, incluindo várias mulheres, como Lisa Sánchez, que em uma aplaudida intervenção
defendeu a sociedade civil e suas mobilizações em prol dos direitos das
mulheres e da igualdade de oportunidades.
Talvez o mais claro e taxativo tenha
sido o crítico literário Christopher Domínguez Michael, para quem a
deterioração da democracia mexicana já é um fato irrebatível, que só poderá se
agravar com o poder quase total dado pelos eleitores ao seu novo presidente,
que obteve a maioria absoluta no Congresso e mantém uma enorme popularidade, da
qual se serve para tomar decisões pessoais nos campos econômico, político e
cultural que frequentemente surpreendem seus próprios ministros e assessores.
Tudo isso, afirmou, deixa entrever um futuro inquietante para o país que tem
mais falantes de espanhol no mundo inteiro. E outro crítico, ensaísta e
professor universitário, Guillermo Sheridan, ofereceu sutis interpretações
dessas mesmas críticas.
Falavam devagar, sem se alterar,
guardando as formas, e eram escutados com uma atenção rigorosa por um público
que lotava a sala e no qual abundavam os estudantes universitários. O bacharel
Raúl Padilla, inventor da grande Feira do Livro que ocorre nesta cidade todos
os anos e que pôs o nome de Guadalajara no mundo inteiro, nos tinha
advertido de que talvez houvesse incidentes. Mas não houve nenhum, e às nove
horas do fórum transcorreram em absoluta paz. “Isto é a civilização”, pensei
muitas vezes, “um mundo de ideias e razões, tão diferente do que estamos
acostumados em outras partes, das banalidades e lugares-comuns de que costuma
estar cada vez mais trufada a política em nossos dias”.
As inquietações dos intelectuais
mexicanos com seu novo Governo me parecem justificadas. O passado de López
Obrador e suas campanhas políticas delatam um dirigente impregnado de
populismo, algo que não teve o cuidado de dissimular desde que está no poder. A
cada manhã, durante duas horas seguidas, oferece uma entrevista coletiva em que
os jornalistas presentes costumam ser mais servis que independentes.
Suas decisões ele costuma tomar de
improviso, prescindindo dos marcos legais, mediante ukazy que,
depois, seus funcionários ajeitam, não sem dificuldade, para lhes dar cobertura
legal. E todas suas iniciativas parecem guiadas por um instinto ou palpite do
momento, mais que de acordo com um programa, embora tenha tido um em sua
campanha, mas pareça ter dele se esquecido. Assim ocorreu com a construção do
novo aeroporto na Cidade do México, que cancelou de maneira arbitrária e que
provocou seu primeiro atrito com o empresariado mexicano.
É verdade que sua enorme
popularidade o defende contra todas as críticas, mas isto parece ter
agudizado no personagem o que estes intelectuais observam nele: a presença do
caudilho tradicional latino-americano, voluntarista e despótico, que,
precisamente por ser muito popular, acredita estar acima das leis e normas
democráticas.
Não há censura de imprensa por uma
razão que explicou, com afiada lucidez, o ex-ministro mexicano de Relações
Exteriores Jorge Castañeda, ensaísta e professor universitário atualmente nos
Estados Unidos. Os anunciantes de mais peso, empresários importantes, recebem
um telefonema do próprio presidente ou de um intermediário de confiança,
aconselhando-os ou rogando-lhes que reduzam ou cancelem seus anúncios no jornal
(como poderia ter ocorrido com o Reforma, o grande jornal do México, que,
por acolher as críticas de seus colunistas ou as formular ele mesmo, caiu em
desgraça com o poder e viu sua publicidade diminuir de maneira dramática).
Os empresários, que querem levar a
vida em paz, ainda mais com um governo populista, não hesitam em acatar a
sugestão. Deste modo, os meios ameaçados moderam suas críticas, ou correm o
risco de quebrar. Assim se instala a censura atual nos países democráticos:
asfixiando-se economicamente a imprensa –leia-se rádios e redes de televisão –
independente ou díscola.
O México é um grande país e, com todos
os defeitos de seu velho sistema político, desde que o ex-presidente Zedillo
permitiu eleições realmente livres, no ano 2000, viveu um processo
democratizante indiscutível, do qual tanto as elites como a população comum
participaram com entusiasmo. Os Governos destas últimas décadas foram
escolhidos em eleições genuínas, e sua política internacional correspondeu
nestes anos à do chamado Grupo de Lima, que, em casos como os da Venezuela
e Nicarágua – dois regimes autoritários e corruptos –, manteve uma posição
impecável, exigindo eleições livres e defendendo a oposição que é vítima de
maus tratos, encarceramentos, torturas e assassinatos. Desde que López
Obrador está no poder, o México optou por uma “neutralidade” que equivale à
cumplicidade com ambas as ditaduras (como se pudesse ser neutro perante a peste
bubônica).
Estas jornadas que tiveram lugar na
Universidade de Guadalajara mostram que não será fácil para o Governo atual
retroceder todo o avançado no México, e que à frente desta resistência estão
intelectuais com espírito crítico, como os participantes deste fórum. O povo
que aplaude e continua encantado pelos desplantes do presidente López Obrador
compreenderá – tomara que antes cedo do que tarde – que a era dos caudilhos
deve ficar para trás, e para sempre, em uma América Latina onde a liberdade e a
democracia vão substituindo as tiranias populistas que lhe causaram tanto dano.
Autor: Mario Vargas Llosa – Publicado no El País
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