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1 de fevereiro de 2024

O Brasil que segue tolerando o intolerável!

  

Mulheres do Candomblé, uma das mais importantes religiões de matriz africana no Brasil. Foto Edilson Rodrigues AFP - Getty Images.

No dia 07 de julho de 1920, o jornal A Noite noticiou uma batida feita pela polícia do Rio de Janeiro – então capital federal – na rua Alice, no largo da Otaviana, em Madureira. Segundo a reportagem, os sons de um batuque levaram os policiais até o local, onde foram apreendidos "bancos, tambores, punhais, tigelas, pólvora, reco-recos e muitos outros apetrechos bélicos próprios para a feitiçaria".  A dona da casa era Rita Cordeiro, uma senhora conhecida como feiticeira, por causa dos despachos e trabalhos que ela fazia.

Um passeio por jornais do Rio de Janeiro e de outros centros urbanos do país publicados entre os últimos anos do século 19 e as primeiras décadas do século 20 mostra que eles estão recheados de notícias como essa: batidas policiais em espaços que ficaram conhecidos como casas de feitiçaria, mas que na verdade eram terreiros de candomblé e casas de umbanda, duas das mais importantes religiões de matriz africana no Brasil.

O desfecho imediato dessas ações policiais costumava ser o mesmo: os objetos apreendidos ficavam com a polícia (como prova do crime de feitiçaria) e os ditos feiticeiros, feiticeiras e quem mais estivesse nas casas ou nos batuques, passavam uma ou duas noites "no xadrez”.

Havia uma intenção muito clara por trás dessas ações policias e da maneira como elas eram noticiadas na época: criar uma relação imediata entre as religiões de matriz africana e a criminalidade. Não bastava prender aqueles que professavam tais religiões: era necessário criar uma cultura da intolerância – para que a opinião pública não só apoiasse, como vibrasse com as batidas policias e todas as histórias que conectassem batuques, orixás, tambores, transes, despachos, cultura afro-brasileira, pessoas negras e prisões.

Foram mais de cinco décadas em que um acordo entre o alto escalão da política brasileira e os principais veículos de informação do país alimentou um imaginário no qual não existia nenhum espaço para a diversidade religiosa que cultuasse as heranças africanas.

O resultado disso? Sentimos até os dias de hoje.

Foi apenas no ano de 2007 que o dia 21 de janeiro foi decretado como o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa. Uma intolerância que, infelizmente, é ampla e irrestrita, mas que no Brasil tem uma forte tendência a discriminar aqueles que professam religiões de matriz africana. Dados recentes mostram um crescimento expressivo das denúncias de intolerância religiosa nos últimos anos. Não é possível entender esses dados sem relacioná-los à cultura de ódio em que estivemos mergulhados nos últimos anos. Uma cultura que, vale dizer, foi muito bem construída para manter toda uma estrutura de poder que ordena o país há, pelo menos, duzentos anos.

Tudo isso para dizer que a intolerância religiosa às culturas de matriz africana não é apenas um detalhe nefasto da sociedade brasileira, cuja parcela significativa também odeia padres e pastores que atuam junto aos mais pobres, aos usuários de drogas e à comunidade LGBTQIAPN+. A intolerância religiosa é um sintoma do quão profundas são as raízes do racismo no Brasil. Estamos falando do uso de termos como "magia negra” para designar aquilo que é considerado "religião menor”. Estamos falando da destruição da imagem de uma santa negra em rede nacional. Estamos falando de crianças e jovens que são apedrejadas nas escolas por estarem usando contas ou turbantes brancos. Estamos falando de terreiros que são incendiados por serem o que são. Estamos falando de mães de santo assassinadas na porta de suas casas. Estamos falando de uma cultura da intolerância que organizou a própria ideia e experiência de Brasil.

Não podemos mais tolerar o intolerável.

Autora: Ynaê Lopes dos Santos Mestre e doutora em História Social pela USP, professora de História das Américas na UFF. Autora dos livros Além da Senzala. Arranjos Escravos de Moradia no Rio de Janeiro (Hucitec 2010), História da África e do Brasil Afrodescendente (Pallas, 2017).

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