Arte O genocídio palestino de Carlos Latuff (@LatuffCartoons).
A atual brutal violência do Estado de Israel contra a população palestina não deveria surpreender ninguém. A ideologia sionista sempre carregou em si a lenda de um povo sem terra ocupando uma terra sem povo.
Na melhor das hipóteses, estariam lidando com uma população não-civilizada, semi bárbara. Após a ação militar do Hamas em 7 de outubro, várias lideranças sionistas argumentaram, de forma direta ou indireta, que se tratava de uma ação desumana e que, portanto, o Hamas e seus seguidores devem ser tratados como desumanos.
Na verdade, é assim que os sionistas desde sempre trataram e olharam para o povo Palestino. A colonização veio junto com uma ideologia de superioridade e racismo, e, na impossibilidade de expulsar todos os palestinos com um sistema de apartheid, a vertente de esquerda argumentava que o sionismo iria libertar a região da opressão do feudalismo. Tratava-se de um socialismo para um povo só.
Hoje em dia o sionismo não é mais laico, nem tem a fachada socialista dos kibutz, ele assume de vez a cara de um extremismo de direita liderado pelo primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, que ocupa, desde dezembro 2022, pela terceira vez, o posto (primeira de 1996-1999, segunda de 2009-2021). Yasser Arafat, que liderou a Organização pela Libertação de Palestina (OLP) de 1969 até sua morte, em 2004, comentou em uma entrevista no início da década de 1990 que o drama dos Palestinos era serem as vítimas das vítimas da história. De fato, embora a ocupação e colonização de terras árabes pelo sionismo tenha começado antes, ganhou força na década de 1930, como o avanço do nazismo na Alemanha.
Sob domínio dos britânicos e com o avanço rápido da colonização sionista, houve uma primeira reação em 1937, que ficou conhecida como a Revolta Árabe e chegou a controlar Jerusalém, Nablus e Hebron. Para reprimir essa revolta, as milícias sionistas e forças armadas britânicas atuaram em sintonia. O autor Rashid Khalid registrou que cerca de 10% dos homens adultos na Palestina foram mortos. O primeiro dos muitos massacres contra o povo palestino que marcam o avanço da colonização sionista das suas terras. Mas foi a Organização das Nações Unidas que, em 1948, decidiu, em nome do direito internacional, que os Palestinos deveriam ceder cerca de metade das suas terras para a criação do Estado de Israel.
Naquele ano quase a totalidade dos países africanos e grande parte dos asiáticos não haviam ainda conquistado sua independência, logo, essa ONU que cometeu tamanha injustiça foi dominada pelos países do Ocidente. Nesse caso, com apoio incondicional da União Soviética, que acreditava que o Estado sionista tenderia a favorecer o campo socialista, em um contexto no qual os países árabes ainda estavam sob controle político de monarquias conservadoras, aliadas do Ocidente.
Essa decisão da ONU, em um momento em que o Brasil estava na presidência da Assembleia Geral (AGNU), com a figura muito respeitada em Israel, Osvaldo Aranha, só foi possível porque o mundo havia assistido ao Holocausto, um crime não só contra o povo judeu, mas contra a humanidade. Isso criou uma massa crítica ideológica e política para atender o pleito dos sionistas. Há, porém, uma coisa fundamentalmente errada: o crime foi cometido na Europa, por europeus (nazistas e seus colaboradores ativos e passivos), mas quem foi sacrificado foi o povo palestino!
Logo, os árabes não tinham por que aceitar essa divisão e tentaram, com a força militar impedir, em vão, a instalação do Estado de Israel. Isso resultou em uma destruição massiva dos povoados palestinos e um êxodo forçado, conhecido como Nakba (em português, catástrofe), em 1948. A ONU entrou para aliviar o sofrimento ao instalar o primeiro grande programa de apoio aos refugiados na sigla inglesa: UNRWA, que até hoje é o maior programa para apoio a refugiados.
A grande maioria da população em Gaza tem status de refugiada e, desde então, a política social e educacional nos campos de refugiados é organizada e mantida pela ONU. Um trabalho importante, essencial e louvável, mas que não deixa de legitimar a colonização das terras palestinas e a expulsão da sua população. Passaram-se mais três guerras: em 1956, quando Israel ajudou as forças britânicas e francesas contra o Egito do Gamal Abdel Nasser (1954-1970); em 1967 e 1973, quando Israel resistiu, com o apoio dos EUA, à ofensiva das forças armadas dos países árabes lideradas por Egito e Síria.
O Estado de Israel se tornou o maior aliado dos EUA em apoio militar e político desde então. Era, e continua sendo, um pilar fundamental para exercer a hegemonia estadunidense em uma região que concentra mais da metade das reservas mundiais de petróleo. Ao mesmo tempo, o lobby sionista nos EUA se tornou mais poderoso, com enorme capacidade de influenciar a política, a mídia e a academia no país. Foi a partir da guerra de 1967 que Gaza, Cisjordânia e as Colinas de Golã passaram a ser militarmente ocupadas por Israel. Os primeiros dois territórios deveriam, junto com Jerusalém Oriental, ser a base de um Estado Palestino.
Na década de 1970 e 1980, assistimos a várias ações da própria OLP, que então era caracterizada pelos aliados de Israel como organização terrorista. Mas, na década de 1960 e 1970, pós-descolonização, a Assembleia Geral da mesma ONU (AGNU) começou a ser palco de contestação contra a negação dos direitos dos palestinos. Os povos recém-descolonizados, que hoje chamamos o “Sul Global”, se identificaram com a luta dos palestinos, e, de lá para cá, assistimos a várias resoluções aprovadas na Assembleia Geral (com a maioria dos votos) e derrubadas no Conselho de Segurança (pelo veto dos EUA) em defesa dos palestinos e contra a ocupação ilegal da Cisjordânia e Gaza.
Houve, no início da década de 1970, inclusive a aprovação da resolução da AGNU que classificou o sionismo como forma de racismo. Resolução que foi revogada no início da década de 1990. Mas Israel nunca se preocupou com isso e sabe que pode esticar a corda quanto quiser, que os EUA até podem ficar constrangidos, mas nunca vão deixar de apoiá-los. Ou seja, a ONU ganhou um segundo papel no conflito: além de aliviar o sofrimento humano, se tornou um espaço de contestação, porém, sem efeito prático. A solução não virá, portanto, da ONU, que foi palco do pecado original, conforme explicado, e continua refém dos interesses hegemônicos dos EUA e seus aliados.
Isso não significa que não seja importante usar o espaço para disputar a narrativa política e muito menos negar a importância das ações humanitárias. A situação parecia estar em um impasse, até que, em 9 de dezembro de 1987, a própria população de Gaza, e sobretudo, da Cisjordânia, resolveu enfrentar a força militar israelense com a cara e coragem, tendo como única arma as pedras da sua terra no que ficou conhecida como a Intifada. Difícil caracterizar a população inteira como terrorista. Houve mudanças na opinião pública na Europa, no contexto do fim da Guerra Fria, e nesse processo, a própria OLP reconhece na prática a existência do Estado de Israel, abraçando então o projeto da ONU da solução de dois Estados.
Isso culminou nos famosos acordos de Camp David, em 1992, mediados por Bill Clinton. Ou seja, a OLP fez todas as concessões básicas, abriu mão da luta armada e muitos imaginavam que se havia chegado a uma solução pacífica com o reconhecimento dos direitos mínimos dos palestinos. Doce ilusão. O que ficou claro de lá para cá é que o Estado de Israel nunca levou a sério e nunca iria aceitar a criação de um Estado Palestino.
Pelo contrário, partiu para uma ofensiva para inviabilizar essa solução ao estimular ocupações ilegais da Cisjordânia por colonos sionistas e separar a relação entre Cisjordânia e Gaza. Houve incentivos claros para inflamar as tensões entre a Autoridade Palestina, das forças da OLP na Cisjordânia e do Hamas em Gaza. Ou seja, houve uma anexação de fato de parte importante do território na Cisjordânia, nas terras mais férteis e com controle das águas subterrâneas. Estima-se que há hoje quase 700 mil colonos (settlers) sionistas na Cisjordânia e Jerusalém Oriental, contra uma população palestina de dois milhões.
A dupla Trump e Netanyahu, com Bolsonaro dando sua contribuição, partiu para uma nova fase: apagar o conflito. Negar o status de refugiados, questionar a legitimidade da UNRWA e tirar o assunto da pauta. Uma política de apagamento. Para isso, precisavam do apoio das lideranças árabes. Trump foi para a ofensiva para convencê-los a reconhecer o Estado de Israel e fazer acordos de cooperação. Estes ganharam o nome de “Acordos de Abrahão”.
No caso do Marrocos, por exemplo, este ganhou em troca o reconhecimento por parte dos EUA do seu direito soberano sobre o Sahara Ocidental. Nesses Acordos de Abrahão não estava nenhum compromisso por parte de Israel com os palestinos. Até que foi servido o filé mignon: o reconhecimento do Estado de Israel pela Arábia Saudita, país sede de Meca e centro da religião islâmica, em particular do sunismo, a vertente do Islam majoritária entre os palestinos. Fazia muito tempo que esta monarquia conservadora apoiava na prática os interesses dos EUA e Israel na região, mas, da boca para fora, se mantinha solidária com o povo palestino.
O que aconteceu no mês de outubro de 2023, 50 anos após a invasão do Sinai pelas forças de Egito na Guerra de Outubro de 1973, foi uma reação a esse processo de anexação de fato da Cisjordânia e ao apagamento da questão palestina de vez da agenda política internacional. O terror contra o povo palestino não começou em 7 de outubro, mas ganhou novamente visibilidade perante a opinião pública. E por mais que os líderes árabes tenham tentado durante anos se distanciar do problema, suas populações reagiram em massa obrigando-os a se posicionarem novamente, pelo menos no discurso.
Na Europa assistimos à volta dos movimentos de solidariedade com o povo de palestino, visivelmente liderado por membros das comunidades provenientes de países do Sul Global, seja na primeira, segunda ou terceira geração. O conflito ganhou a cara que tem: uma herança do colonialismo e imperialismo ocidental. Não sabemos como essa fase do conflito vai terminar, mas é certo que a tentativa de apagar o povo palestino foi derrotada. Não obstante, as perspectivas são nada animadoras. O Israel de Netanyahu não tem vergonha de mostrar sua cara mais terrorista. Em pouco tempo houve uma concentração de bombardeios sobre uma população indefesa sem precedentes na história recente.
Além dos milhares de palestinos, o terror causou também o maior número de vítimas por parte das próprias Nações Unidas registrado desde sua criação: mais de 100 funcionários já perderam a vida. A crueldade é acompanhada de um cinismo ao sugerir que a população pode se refugiar em “safe zones”, zonas seguras, quando na verdade não há mais nenhum lugar em Gaza seguro, provocando movimentos populacionais visando exaustão e mortes por doenças várias, falta de água e ausência de condições mínimas de sobrevivência.
Logo depois do término do breve período de trégua, começaram os ataques violentos no sul de Gaza, que era justamente para onde a população deveria se dirigir de acordo com os panfletos distribuídos pela força área israelense. Parte integrante da ideologia sionista é insistir na ideia de que quem questiona, mesmo moderadamente, a violência do Estado de Israel é antissemita. É a outra face da moeda que diz que os palestinos que enfrentam a violência recorrendo à luta armada são “terroristas”.
Assim, se divide o mundo entre antissemitas, terroristas e aliados incondicionais para justificar o massacre contra o povo palestino. Em particular na situação atual, insistir em chamar militantes e seguidores do Hamas de forma sistemática de “terroristas” é na prática dar licença para matar. Há de se esperar isso da mesma imprensa brasileira que insiste em enfatizar um tal de “antecedente criminal” quando a polícia militar mata mais alguém de uma comunidade precária no Brasil, mas é difícil de aceitar isso vindo de expoentes do governo Lula e do Partido dos Trabalhadores.
Cínicos os EUA, na figura do Antony Blinken, pedindo moderação ao aplicar o terror chamado de “direito de legitima defesa”. Cínicos também os líderes mundiais que, no meio da brutal violência contra a população civil, voltam a sugerir a solução de dois Estados, enquanto, além das atrocidades em Gaza, dezenas de palestinos são assassinados pelos colonos na Cisjordânia. A rigor, todos os governos do mundo defendem a tal da solução de dois estados, portanto não é um plano de pacificar a situação, mas uma palavra de ordem para não apontar a causa principal: o terror do Estado sionista contra o povo palestino. Mas os supostos aliados da causa palestina não dão por menos.
O príncipe-herdeiro Mohammed bin Salman, líder de fato da Arábia Saudita, reuniu líderes árabes e muçulmanos supostamente para pressionar Israel e os EUA a encerrar o massacre. Mas ficou no discurso. Nenhum dos países que tinham estabelecido relações diplomáticas com Israel voltou atrás. O uso da arma de embargo e petróleo não entrou na pauta. Nada que pudesse incomodar o Estado de Israel saiu desse encontro.
Sabe-se que a preocupação do Mohammed bin Salman não é tanto usar sua influência com Israel e os EUA, mas sua reaproximação com o Irã para convencê-lo a moderar seus aliados em Gaza e manter o Hizbollah libanês e as forças armadas dos Houti´s iemenitas fora da guerra. Nem precisa, pois como a China e Rússia, o Irã usa palavras duras e acertadas, mas não vai se envolver diretamente. Afinal, Israel é uma potência nuclear, e, aliás, como é de se esperar, não é membro do Tratado de Não Proliferação de armas nucleares (TNP). E conta com apoio incondicional dos EUA, ainda a maior potência militar, que reforçou sua presença na região.
O que o
sionismo, o terror do Estado de Israel, o cinismo dos aliados e o pragmatismo
dos interesses que verbalmente estão do lado certo da história não consegue
apagar é a resistência do povo palestino e a solidariedade internacional que se
manifesta nas ruas dos cinco continentes e que não pode parar enquanto
persistir essa resistência.
Autor:
Giorgio Romano Shutte é professor de Relações Internacionais da Universidade
Federal do ABC (UFABC). Publicado no VioMundo.
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