Milhões de jovens no Brasil abandonam a escola por "falta de interesse". Acho a definição rasa e perigosa, é preciso olhar as histórias de vida por trás da estatística, escreve o fundador do projeto social Salvaguarda.
"Nunca vi a escola como um negócio que futuramente me daria retorno. Eu ia para a escola quando mais novo, pois era obrigado." Essa é a visão que um ex-estudante da rede pública tinha da escola. Ele agora faz parte da estatística de alunos que não concluíram a educação básica. Dados da PNAD Educação 2019 apontaram que 20% das 50 milhões de pessoas de 14 a 29 anos no país não completaram alguma das etapas da educação básica.
O segundo maior motivo para a evasão escolar foi a "falta de interesse" e correspondeu a 29% do total de alunos que abandonaram a escola – o primeiro motivo é a necessidade de trabalhar (39%). Ao fazermos do diploma do ensino médio um pré-requisito para quase todos os empregos formais atualmente, criamos uma dificuldade de inserção no mercado de trabalho para aqueles que não o possuem. Nesse cenário, esses jovens acabam aceitando qualquer emprego para sobreviver, mesmo aqueles em que podem ser explorados ou não ter acesso a direitos trabalhistas básicos.
Por essa razão, acho o termo "falta de interesse" raso e perigoso, pois ao definirmos 2,9 milhões de jovens assim, estamos, consequentemente, assumindo que eles simplesmente escolheram ter uma vida adulta de dificuldade financeira, falta de oportunidades e sujeita a exploração no mercado de trabalho. Além disso, perdemos a oportunidade de os ouvir para entender o que faltou na escola para eles, se viam sentido nela.
Histórico de reprovação
Para entender um pouco as histórias de vida por trás da "falta de interesse", tive a oportunidade de conversar com quatro estudantes que abandonaram a escola e se enquadram no perfil. Um deles é do Amapá; uma é da Bahia; um, do Rio Grande do Sul; e o outro, de São Paulo.
Por coincidência, todos tinham histórico de reprovação antes de optarem por parar de frequentar a escola. "Na última vez que reprovei, caiu a minha ficha. No primeiro dia de aula quando voltei, pensei que tinha ido para o terceiro ano e não tinha ido. Naquele dia eu chorei tanto, meu Deus do céu", diz o aluno do Sul. Segundo os estudantes, se não tivessem repetido outras vezes, não teriam desistido.
Como os pais lidaram com as reprovações e a desistência? De acordo com os estudantes, de forma um tanto quanto indiferente. Segundo a aluna da Bahia: "Quando eu contei, eles já esperavam. Sabe a cara deles de 'tanto faz para mim, já esperava isso de você'. Aí meu pai disse que não valeria a pena tentar mais, pois iria reprovar novamente. Ali, para mim, meu mundo caiu. Coloquei na cabeça e nem tento mais. Sei que vou fracassar de novo. Foi ali que pensei, realmente devo parar, mas sinto muita falta".
Distante do "mundo real"
O maior motivo das reprovações foram as faltas. Eles simplesmente não tinham vontade de ir para a escola. Não viam sentido nem relação entre a instituição e o "mundo real" que conheciam. Principalmente, não enxergavam a escola como um instrumento de acesso a um futuro com mais oportunidades.
"Eu já tinha um pensamento de que estudo, lá na frente, não faria falta pra mim", diz o aluno de São Paulo. Já o do Amapá disse que "vivia bagunçando, queria ficar jogando bola. Fui expulso de uma escola, até hoje não me querem lá. Fui com alguns amigos. Ai me lasquei, né?"
Talvez a grande dificuldade seja fazer com que esses jovens vejam sentido na escola. Certamente não será tentando os convencer, a qualquer custo, de que é importante ler livros, ter acesso à literatura clássica e aprender matemática. Falta um sentido mais prático. Penso que, primeiro, precisamos buscar formas de tornar o mais visual, óbvio e explícito possível a relação entre escolaridade e mercado de trabalho. Dessa forma, pelo menos, iremos conseguir trazer para a conversa esses alunos "desinteressados". Eles poderão se apropriar mais da escola sabendo que ela terá uma relação direta com os seus sonhos e planos futuros. Pois todos eles têm sonhos, mas não associam a escola como instrumento para os alcançar.
Com eles na conversa e como parte ativa na construção de como a escola deveria ser, poderemos os ouvir e, principalmente, aprender com eles. Quais são as demandas que eles têm, mas que a escola não cobre? Como gostariam que fosse? O que falta para verem sentido nela? Dessa forma, teríamos na construção da educação brasileira também as vozes desses milhões de alunos que atualmente, infelizmente, não se interessam por ela.
Autor: Vozes da Educação é uma coluna quinzenal escrita por jovens do Salvaguarda, programa social de voluntários que auxiliam alunos da rede pública do Brasil a entrar na universidade. Revezam-se na autoria dos textos o fundador do programa, Vinícius De Andrade, e alunos auxiliados pelo Salvaguarda em todos os estados da federação. Siga o perfil do Salvaguarda no Instagram em @salvaguarda1
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