Somente nas últimas oito semanas, um bombeiro incendiou a sede de um jornal no interior de São Paulo (porque o veículo defendia medidas de isolamento social) e dois policiais militares tiveram surtos psicóticos, em Salvador e São Paulo, de forma a ameaçarem os cidadãos que eles deveriam proteger.
Ao
praticarem os crimes, os três evocaram teorias conspiratórias avançadas pelo
bolsonarismo, o que eleva as atuais ameaças da extrema direita à vida social
brasileira a um nível jamais visto, se considerarmos, ainda, que civis também
têm dado demonstrações de psicopatia, formalizando ameaças e invadindo
instituições da República, enquanto o bolsonarismo segue estimulando o
armamento da população. Existem, fundamentalmente, algumas estradas pelas quais
Bolsonaro vem conduzindo o país, no começo do século XXI, ao paroxismo da
ignorância e do caos: a militarização, a milicianização, a evangelização e,
consequentemente, a negação absoluta da política institucional brasileira.
Nesse ponto, faz-se necessária uma distinção entre os conceitos de militarização e milicianização da política, ambos muito presentes no Brasil atualmente: o primeiro, para os propósitos deste artigo, traduz o movimento de participação cada vez maior de delegados, policiais, cabos, bombeiros e militares em geral na política institucional do país, o que é perfeitamente constitucional e expressa certos anseios da população no que tange a segurança pública. Já o segundo é sobre a também crescente presença de grupos paramilitares e estruturas ilegais, que atuam por meio da violência e coerção, o que oferece margem para eventos como os citados acima e caracteriza diversos crimes previstos na lei brasileira.
Dados
divulgados pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) sobre os registros de
candidaturas às prefeituras e às câmaras municipais em 2016 e em 2020 apontaram
que o número de candidatos com títulos militares para as prefeituras no Brasil
saltou de 53, em 2016, para 243, em 2020, aumento de mais de 300% e muito acima
do acréscimo geral de candidatos, que foi de apenas 18%. A presença de
militares em cargos comissionados no governo federal também explodiu entre os
anos de 2013 e 2020. Outro dado que indica um ambiente social mais tenso e a
redução do debate público: até o fim de setembro de 2020, as mortes e agressões
contra políticos somavam 112 vítimas, com execuções que foram realizadas até
durante transmissões ao vivo via internet e centenas de casos de intimidação.
Somente na última semana de janeiro deste ano, quatro parlamentares do PSOL sofreram ameaças e atentados na cidade de São Paulo e em outras partes do país. As residências das Co vereadoras Samara Sosthenes e Carolina Iara foram atingidas por disparos de arma de fogo e, felizmente, ninguém foi ferida. A vereadora de São Paulo Erika Hilton registrou um boletim de ocorrência após ser ameaçada, em seu próprio gabinete, por um homem que portava uma bandeira e máscara com símbolos cristãos. Taís Lane dos Santos, que foi candidata a vereadora nas eleições municipais de 2020, foi agredida física e verbalmente por um sargento da Polícia Militar em Rio Largo, Alagoas, o que denota os mesmos métodos utilizados pelas milícias cariocas e máfias em geral.
Em
dezembro de 2020, reportagem da Pública revelou um escândalo na Agência
Brasileira de Inteligência (Abin), destacando que pelo menos quinze servidores
da agência haviam sido colocados em ministérios como o da Economia,
Infraestrutura, Saúde e Casa Civil, por exemplo. Fontes internas afirmaram que
havia centenas de agentes espalhados pelos ministérios da gestão bolsonarista e
que Alexandre Ramagem, então diretor da Abin, haveria declarado abertamente que
a intenção era criar uma estrutura semelhante ao que foi a Comissão Geral de
Investigação (CGI), durante a ditadura militar no Brasil.
Além disso, o número de inquéritos abertos na Polícia Federal com base na Lei de Segurança Nacional, portaria que foi criada na ditadura militar, vem aumentando nos últimos anos. Foram dezenove, em 2018, vinte e seis, em 2019, e cinquenta e um, em 2020. Aumento de quase 270% em dois anos. A ausência do debate, a falta de pluralidade e a promessa de ordem são características tanto das organizações militares legais como dos grupos milicianos e das estruturas aparelhadas ou totalmente paralelas ao Estado. Trata-se de um traço muito característico do próprio bolsonarismo.
A
filosofia militar é organizada com base em disciplina, hierarquia e rigidez,
enquanto a proposta miliciana baseia-se na intimidação, na coerção e na
violência. Ambas, contudo, prometem impor a ordem de forma enérgica e vigoram
em ambientes nos quais a troca de ideias, os recursos básicos de infraestrutura
social (saúde, moradia, alimentação, educação, lazer e segurança,
principalmente) e a diversidade foram reduzidas ou anuladas, o que também
fortalece a posição do dogma religioso no cerne da vida social brasileira.
Conforme
eu abordo no livro "A ascensão do bolsonarismo no Brasil do Século
XXI", o dogma religioso, mais precisamente considerando a notória adesão
de diferentes correntes e grupos evangélicos, foi fundamental à eleição de Jair
Bolsonaro em outubro de 2018. Desde então, o processo de expansão desses grupos
evangélicos em todas as dimensões da vida social, política e econômica foi
ainda mais catalisado. Alguns pontos centrais ajudam a refletir sobre esta
inflexão: a hierarquia, a multiplicação celular e a facilidade de ascensão
social presentes na proposta neo-evangelista como ela está organizada no país em
2021.
Evidentemente,
as organizações hierárquicas das igrejas evangélicas variam de acordo com cada
grupo e ramificação histórica. Em linhas gerais, contudo, existe uma estrutura
rígida, determinada por ordem de importância: apóstolo, bispo, pastor,
presbítero, ministro, coordenadores e líderes de células, obreiros e fiéis.
Apesar das primeiras posições desta pirâmide serem ocupadas, invariavelmente,
pelas figuras centrais de cada movimento, e de oferecerem poucas possibilidades
de mobilidade sucessória, os cargos inferiores do arranjo podem ser acessados
com muito mais facilidade, o que potencializa o caráter de multiplicação
celular dos grupos.
No Brasil, a Igreja Católica, por exemplo, reúne os seus seguidores somente dentro das igrejas. Os padres são eclesiásticos, com formação em teologia e que falam uma linguagem cada vez mais distante da população em geral. Na igreja evangélica, qualquer cidadão pode se tornar um líder de célula em questão de meses após o ingresso na entidade. Esse novo membro, que na maioria dos casos não precisa de nenhuma formação prévia, passa a reunir a comunidade dentro da sua própria casa e promove a multiplicação desta célula como orientação formal de desenvolvimento da doutrina.
Soma-se à equação o fato de que o televangelismo é muito mais um fenômeno da comunicação social de massa, político e econômico do que de caráter religioso, propriamente. Todos os principais pastores evangélicos que promoveram a ascensão do bolsonarismo em 2018 transmitem as suas ideias por meio da televisão aberta e da internet. Alguns são proprietários de veículos de comunicação hegemônicos e figuram na lista de bilionários da revista Forbes.
Assim,
nenhuma outra área da atuação social brasileira oferece uma oportunidade tão
rápida, segura e promissora como projeto de vida, principalmente nas regiões
mais pobres do país, nas quais o Estado é totalmente ausente. Além disso, as
igrejas são isentas de impostos, arrecadam os dízimos por deliberação dos fiéis
que as pagam, e são capazes de estabelecer, sem nenhuma forma de contestação ou
abertura ao debate, as narrativas sociopolíticas que mais lhes interessam em
determinada ocasião.
Por esses motivos, diversos estudos projetam que o Brasil poderá se tornar um país de maioria evangélica ainda nessa década, organizado de forma cada vez mais homogênea e intolerante com a diversidade do seu próprio povo, principalmente considerando a forma como essas filosofias rechaçam a participação da comunidade LGBTQIA+, mulheres, pretos e pardos nos espaços de poder. Portanto, conforme já abordado nesta coluna, na tentativa de evitar a derrota eleitoral que vem se desenhando para 2022, o bolsonarismo leva a cabo o seu projeto de destruição, ancorado na celebração do caos e da ignorância como virtudes para inviabilizar o debate.
Isso
representa a transformação da política na guerra e no conflito sem mediação,
jogando o país numa tempestade perfeita em tempos de pandemia. Não há limites
para esta máquina de destruição bolsonarista, de maneira que impedi-la
imediatamente pelas vias constitucionais é tarefa urgente para os brasileiros.
Autor: Cesar Calejon é jornalista com especialização em Relações Internacionais pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) e mestrando em Mudança Social e Participação Política pela Universidade de São Paulo (EACH-USP). É, também, autor do livro "A Ascensão do Bolsonarismo no Brasil do Século XXI" (Lura Editorial).
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