Estudo em parceria com a Conectas antecipado pelo EL PAÍS em janeiro revelava como o Executivo Federal atuou para obstruir as respostas à pandemia. Operação de sabotagem segue sendo realizada por Bolsonaro mesmo diante de colapso da rede de saúde.
Dois familiares participam do enterro de uma vítima da covid-19 no Cemitério de Nossa Senhora Aparecida em Manaus. Raphael Alves - EFE
A defesa primordial da vida deveria ser o direito mais básico a ser tutelado pelo Estado, mas a resposta brasileira ao enfrentamento da covid-19 não tem priorizado a proteção da vida e da saúde dos brasileiros. Um recente estudo realizado pelo Cepedisa (Centro de Pesquisas e Estudos de Direito Sanitário) da USP, em parceria com a Conectas, com base em mais de 3.000 normas produzidas pela União desde o início da pandemia, revela como o Executivo Federal atuou para obstruir as respostas dos governos estaduais e municipais à pandemia. O levantamento foi obtido com exclusividade pelo EL PAÍS no fim de janeiro.
A mesma pesquisa avaliou a propaganda contra a saúde pública, como o discurso político que mobilizou argumentos econômicos, ideológicos e morais com o propósito de desacreditar as autoridades sanitárias, enfraquecer a adesão popular às recomendações de saúde baseadas em evidências científicas e promover o ativismo político contra as medidas necessárias para conter o avanço da doença.
Mesmo diante do colapso iminente do sistema público e privado de saúde em diferentes estados, o presidente Jair Bolsonaro segue atacando os gestores públicos que optam por adotar as necessárias―e impopulares ― medidas de distanciamento social. Enquanto as campanhas de vacinação não decolam, o distanciamento social e o uso da máscara são as medidas mais eficazes apontadas por autoridades sanitárias de todo o mundo para reduzir a rapidez do contágio do novo coronavírus e de suas novas variantes.
Ao ir na contramão da ciência, aprofundando a negligência e o negacionismo, temos observado uma estratégia de uso da pandemia para implementar a agenda Bolsonaro de retrocessos sociais e de retirada de direitos. O próprio ministro Ricardo Salles acabou por nos alertar quando, em reunião ministerial de abril de 2020, cujo vídeo foi divulgado após determinação do Supremo, declarou a intenção de aproveitar os holofotes direcionados à cobertura da covid-19 para “passar a boiada” do desmonte da proteção ambiental.
A pandemia foi usada como justificativa, por exemplo, para restringir direitos trabalhistas, alterar a Lei de Acesso à Informação, intervir na escolha de reitores das universidades federais e até para tentar mudar o rito de aprovação de medidas provisórias e, com isso, oferecer poderes plenos ao presidente de legislar sem intervenção de outros poderes. Muitas dessas medidas foram revertidas pelo Supremo ou pelo Congresso, impondo derrotas ao governo, mas intensificando os desgastes das instituições democráticas.
Houve ainda outros episódios que atacaram frontalmente os princípios do estado democrático, como quando se tirou do ar os dados epidemiológicos da covid-19, incentivou a invasão de hospitais de campanha ou promoveu aglomerações em protestos que pediam intervenção no STF (Supremo Tribunal Federal).
O Governo Bolsonaro também usou a pandemia como forma de atacar ou retirar direitos de minorias, como indígenas e quilombolas, migrantes e refugiados e a população carcerária ― todos grupos altamente vulneráveis aos efeitos do coronavírus e que antes mesmo da pandemia vinham sofrendo retiradas de direitos pelo Governo Bolsonaro.
Os indígenas e quilombolas precisaram recorrer ao STF para obrigar a União a elaborar um plano de contingência contra a pandemia que respeitasse suas necessidades. O Executivo Federal chegou a vetar, de um projeto de lei aprovado pelo Congresso de proteção às populações indígenas no contexto da covid-19, itens tão básicos como garantir o suprimento de água potável, materiais de higiene, leitos hospitalares e respiradores mecânicos.
No que se refere aos direitos dos refugiados, desde março de 2020 o governo promove restrições seletivas a pessoas provenientes da Venezuela, país assolado por grave e generalizada crise de direitos humanos. Sob a justificativa de conter a pandemia, refugiados que consigam chegar na fronteira são impedidos de pedir proteção no Brasil e são sumariamente deportados, ainda que turistas sejam permitidos de entrar por via aérea e a fronteira com Paraguai seja a única terrestre aberta, e a despeito de a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) não apresentar uma recomendação neste sentido.
Por fim, a população carcerária, altamente exposta a infecções em razão das condições insalubres e de superlotação dos presídios brasileiros, não foi nem ao menos considerada como grupo prioritário da campanha de vacinação elaborada pelo Ministério da Saúde. As audiências de custódia, aquelas em que a pessoa presa em flagrante deve passar diante de um juiz no prazo de 24 horas para verificar a legalidade da prisão, seguem sendo realizadas por videoconferência na maioria dos estados ― algo que limita a capacidade de identificar indícios de tortura.
Se
ainda não sabemos como, por quanto tempo e em quais circunstâncias teremos que
conviver com a pandemia, podemos assegurar que os estragos do autoritarismo e
conservadorismo que assolou o Brasil levarão anos para serem superados.
Enquanto a maior pandemia da história recente já cobrou mais de 255 mil vidas
no Brasil, experimentamos o avanço acelerado da epidemia do autoritarismo que
corrói as instituições democráticas e ataca o pacto social estabelecido pela
Constituição de 1988.
Autor: Marcos Fuchs é diretor da ONG Conectas Direitos Humanos.
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