Entre
os vários fetiches brasileiros do noticiário econômico, o mito do PIB como
indicador de bem-estar de uma sociedade ainda prevalece nos corações e mentes
do senso comum.
Nunca vamos aprender e sempre ficaremos
com semblante de tacho se continuarmos a repetir, sem reflexão, o que nos
enfiam goela abaixo pelos pauteiros do governo e do Jornal Nacional. O fiasco
da divulgação de um erro reconhecido pelo próprio IBGE nos convida a pararmos
para pensar no seguinte: crescimento do PIB não significa desenvolvimento
econômico ou multidimensional de um país.
Numa ideia bem simplificada, refletir
seria fazer conexão entre fatos, situações e tendências com informações de
diferentes fontes. Vincular o singular ao geral, procurando não confundir
causas com efeitos, que não, necessariamente, ocorrem numa sucessão
cronológica.
Entre os vários fetiches brasileiros do
noticiário econômico, o mito do PIB como indicador de bem-estar de uma
sociedade ainda prevalece nos corações e mentes do senso comum. Ainda nos
deixam com cara de idiota falando o que não sabemos. Pode ser evidente que,
quanto maior o PIB de um país, maior a possibilidade de indicação positiva de
sua economia.
Entretanto, possibilidade apenas, pois
de nada adianta falarmos em desenvolvimento, por exemplo, se o que incidiu no
aumento do PIB foi uma parte apenas de sua composição que não diz respeito a
diferentes elementos agregados das diversas cadeias produtivas.
Por exemplo, ainda que o PIB seja
definido e caracterizado por diferentes itens do que se chama “economia” –
dentro daquilo que alguns resumem como a soma da produção de bens e serviços –
de que valerá, em termos de desenvolvimento, se a principal substância da
composição do indicador estiver relacionada, por exemplo, ao setor de serviços
e a operações financeiras? Ou então, a apenas ao agronegócio?
Nem me interessam aqui se as dúvidas
levantadas foram pelo Financial Times em relação ao resultado do crescimento do
PIB no terceiro trimestre deste ano divulgado pelo IBGE. E também se houve ou
não erro “técnico” na transição de dados e na manipulação das informações sobre
exportação.
Importa, isto sim, que 38 milhões de
brasileiros estão na informalidade e 13 milhões no desemprego. Todo erro ou
acerto “técnico” embute uma disposição ou intenção política. Ou então
incompetência mesmo no manejo de números, tabelas e relatórios. Mas,
tratando-se do PIB, difícil acreditar num deslize meramente técnico de
manipulação de números.
Interessa, por exemplo, também, que elos
nas diferentes cadeias produtivas podem estar se quebrando com a
desnacionalização de ativos nacionais, além da evasão de divisas. Que a
desindustrialização vem ocorrendo num processo estrutural, digamos assim, pelos
sucessivos governos, inclusive do PT, transformando o país numa colônia extrativista
e exportadora de commodities para duas ou três metrópoles.
Ora, como é a “retomada puxada pelo
setor privado”, conforme se noticiou, se o PIB está no mesmo patamar do
terceiro trimestre de 2012, vale dizer, de sete anos atrás? Que agora teria se
recuperado 4,9% desde que atingiu o fundo do povo no quarto trimestre de 2016.
Só pode ser brincadeira ou desfaçatez a
tentativa de nos convencer de que estamos saindo do fundo do povo, subindo um
pouquinho de nível, na escala da crise, pelas paredes escorregadias que
circundam o lamaçal escuro e obscurantista a que chegamos. Lamaçal revolvido
com otimismo pelo teatrinho noticioso do horário nobre.
A tal retomada pelo setor privado é mais
uma falácia do discurso privatista-neoliberal que dissemina a mentira de que
desenvolvimento só ocorre a partir da iniciativa dos empresários, nunca do
Estado, sempre visto como problema, e não como solução, repetindo aqui os
termos usados por Peter Evans.
“Há vinte e cinco anos o Brasil parou de
crescer”, escreveu em junho de 2006, Roberto Mangabeira Unger, que completou:
“Começou a afundar (o país) em longa e triste mediocridade. Seus dirigentes e
pensadores perderam a noção de qualquer rumo que não fosse o do formulário
ruinoso recomendado aos governos de países pobres pelas autoridades acadêmicas,
políticas e econômicas dos países ricos.” (“Depois do colonialismo mental:
repensar e reorganizar o Brasil”, São Paulo: Autonomia Literária, 2018, p.
137).
Ocioso aqui sugerir para que sejam
pesquisadas e lembradas as taxas de crescimento do país nos dois primeiros
governos do PT, a partir de 2003/2004, com números que indicaram a reversão da
paralisia do crescimento que se encontrava há “vinte e cinco anos”, conforme
diagnóstico de Mangabeira Unger. Isso, mesmo com os erros petistas do modelo
voltado para o consumo, a fim de sugerir que o fiasco noticioso de agora, em
cima do fiasco do erro supostamente técnico de um órgão como IBGE, parece fazer
parte do ódio que elegeu o atual governo.
Como pontapé inicial para aprofundar a
reflexão, encerro esse texto com as agudas observações de Amartya Sen, para
quem o Produto Nacional Bruto não sinaliza, necessariamente, desenvolvimento. O
fato é que não adianta termos liberdade de participação política formal apenas.
Precisamos que os indivíduos e grupos diversos tenham também participação
econômica.
Essa participação econômica foi mais
fácil de se conseguir em economias do Leste e Sudeste asiático, graças à ênfase
na educação elementar e na assistência básica à saúde, além da reforma agrária.
Mas, essa participação econômica não foi possível, por exemplo, no Brasil, na
Índia ou no Paquistão, onde, segundo o economista indiano, a criação de
oportunidades sociais tem sido muito mais lenta – e, claro, embarreirando o
desenvolvimento econômico. Vejam o que o autor diz:
“A expansão de oportunidades sociais
serviu para facilitar o desenvolvimento econômico com alto nível de emprego (no
Leste e Sudeste asiático), criando também circunstâncias favoráveis para a
redução das taxas de mortalidade e para o aumento da expectativa de vida. O
contraste é nítido com outros países de crescimento elevado – como o Brasil –
que apresentaram um crescimento do PNB per capita quase comparável, mas também
tem uma longa história de grave desigualdade social, desemprego e descaso com o
serviço público de saúde (…).” (“Desenvolvimento como liberdade”, São Paulo:
Companhia das Letras, 2000, p. 62).
Autor: Álvaro Miranda – Publicado no GGN.
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