“Do rio que tudo arrasta se diz que é
violento, mas ninguém diz violentas às margens que o comprimem.” (Bertold Brecht)
Depois de 10 dias em cartaz, fui
assistir ao filme Coringa e notei relativo esvaziamento nas salas de
exibição. Já era recorde de público no mundo
inteiro, por isso estranhei a não lotação. Sucessos inferiores de bilheteria
lotaram por mais tempo as salas dos shoppings paulistas pelo Estado.
Mas o estranhamento durou pouco, logo
fui abduzido pela magia da sétima arte, comi um saco de pipoca e aproveitei
cada segundo da obra de arte projetada na tela.
Tudo é encantador, o roteiro, a
fotografia e a brilhante interpretação de Joaquim Phoenix.
O filme é sensível e profundo. Traduz
com exatidão e urgência os conflitos e as letais doenças sociais produzidas
pelo capitalismo.
Passei a indicar o filme aos amigos e
conhecidos. E encontrei a mesma resistência e preocupação em várias pessoas:
“ah, mas não é muito violento?”.
Eis a principal a razão do esvaziamento
precoce das confortáveis salas de cinemas. Os mesmos que naturalizam a violência
real contra pretos e pobres e inflam o peito para dizer que “passou da hora de
adotar a pena de morte nesse país” se assustaram ao verem desmoronar a ilusão
pré-concebida do super-herói.
Passaram a difamar e a demonizar o filme
que tanto os incomodou. Nenhuma tese sociológica explicaria de
forma tão impactante o caos que a indiferença social pode causar. O protagonista é o anti-herói, um
cidadão emocionalmente quebrado, perturbado e completamente solitário.
À medida que a sociedade do consumo
empurra tudo que não é espelho para a margem, cria um ambiente paralelo
extremamente imprevisível e perigoso.
Quem não se sente parte do mundo oficial
não tem compromisso com ele. Esse é o detalhe sórdido que a burguesia produz e
não admite. Longe de ser panfletário e avesso ao
maniqueísmo trivial dos filmes de heróis, Coringa é extremamente
poético e assume lado nessa atmosfera de ódio e intolerância que acomete o
mundo em seus quatro cantos.
Denuncia a degradação do tecido social e
a ausência de Estado na vida dos mais desprovidos de renda e afeto.
Incomoda os opressores e seus cúmplices.
Impossível não se mexer na poltrona, não se sentir opressor ou cúmplice pelo
menos uma única vez durante a exibição.
O riso desesperado do protagonista –
inconsciente do seu papel político – desperta indignação e insurgência nos
moradores da cidade.
O filme desvenda, de maneira genial, a
origem da violência e radicaliza a problemática do germinar da semente ao
desmoronar da árvore.
Ele tira o espectador da zona de
conforto e apresenta uma perspectiva utópica e revolucionária. No meio do caos econômico e social que
vive a cidade, o filme propõe que uma classe derrote a outra. Que os muito
ricos e opressores paguem com a própria vida todo mal que causaram ao mundo. Um final apoteótico para alguns e
aterrorizador para outros. Por isso que parte da burguesia nacional
passou a militar contra o filme, dizendo se tratar de um palhaço marxista e
doutrinador.
Incapaz de olhar em torno e assumir sua
responsabilidade nessa tragédia social, a burguesia histérica prefere eleger
fantasmas e confundir a realidade.
Para essa gente, a culpa é sempre dos
outros; dos pobres, dos pretos, dos marginais, das prostitutas, dos gays e dos
comunistas. Uma obra de arte verdadeira carrega
sempre uma beleza livre e subjetiva aos olhos de quem aprecia. Cada um entende
como quiser a narrativa exposta. Eu gosto da metáfora de que precisamos
derrotar tudo que nos faz sofrer. Como alcançar esse objetivo é a busca diária
dos que lutam por um mundo menos injusto.
O caos na velha Nova York fez-me lembrar
de uma frase do jurista e ex-governador de São Paulo Claudio Lembo sobre os
ataques do PCC em 2006:
“Nós temos uma burguesia muito má, uma
minoria branca muito perversa. A bolsa da burguesia vai ter que ser aberta para
poder sustentar a miséria social brasileira no sentido de haver mais empregos,
mais educação, mais solidariedade, mais diálogo e reciprocidade de situações”.
Em tempo, Claudio Lembo não é um
marxista, muito pelo contrário, é um liberal clássico.
Autor:
João Paulo Rillo é diretor de teatro, e militante do PSOL e ex-deputado
estadual paulista.
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