Pode-se
imaginar para onde se dirige um país que se comprometeu com a idiotice total.
As consequências do desprezo ao conhecimento e ao senso comum serão fatais, não
só na Amazônia, escreve Philip Lichterbeck.
Cada assassinato de um indígena no
Brasil diz algo sobre a relação esquizofrênica do país consigo mesmo. Muitos
brasileiros não querem saber sobre as raízes indígenas de seu país e não querem
ouvir a mensagem dos primeiros brasileiros sobre paz, respeito e preservação da
natureza. É uma mensagem sensata. Mas a extrema direita do Brasil a odeia. Por
trás disso há um profundo desprezo pela ciência, pela razão e pelo senso comum.
Desprezo este que está se espalhando cada vez mais pelo Brasil. E com
consequências mortais.
No sábado passado, duas lideranças
indígenas da etnia Guajajara foram assassinadas no Maranhão. Um mês antes,
fora morto a tiros no mesmo estado o "guardião da floresta"
Paulo Paulino Guajajara, conhecido como "Lobo Mau". Em 2019, o número
de mortes de líderes indígenas já é o maior em 11 anos.
Responsável pelos assassinatos é a máfia
dos desmatadores, grileiros, latifundiários e garimpeiros. Ela toma conta de
forma insidiosa da Amazônia. Qualquer um que viaje pelo Norte do país hoje em
dia reconhecerá os sinais por todas as partes. O maior tesouro do Brasil está
sendo destruído sistematicamente.
Mas em vez de combatida, essa máfia é
encorajada pelo governo brasileiro, em especial pelo ministro do Meio Ambiente,
Ricardo Salles. Ele chamou desmatadores ilegais numa Terra
Indígena de "pessoas do bem que trabalham". Parece que
Salles até coopera com os criminosos. A Folha de S. Paulo publicou
uma matéria sobre a recepção que Salles deu a vários infratores ambientais do
Acre. Depois suspendeu a fiscalização na reserva Chico Mendes.
As consequências dessa política são
claras: o desmatamento ilegal na Amazônia cresceu neste ano 30% e bate um novo
recorde. Nas Terras Indígenas, a alta no desmatamento é de até 74%. Como se
isso já não fosse suficiente destruição, a Funai quer suspender a
supervisão de dez Terras Indígenas com povos isolados. Seria uma espécie de
sentença de morte para os últimos povos isolados do Brasil.
A destruição da Amazônia, de sua
história e sua cultura é um dos principais projetos do atual
governo. Ficará como sua vergonhosa herança para as gerações futuras. O governo
alega que está interessado no desenvolvimento econômico. Mas está
cientificamente provado que uma Amazônia intacta é economicamente muito mais
valiosa. Sua destruição terá consequências ecológicas, sociais e econômicas
catastróficas para o Brasil.
Torna-se claro que o Brasil
caiu nas mãos de ideólogos perigosos. São fanáticos dos quais, em outros
tempos, se riria sonoramente. Agora eles estão tentando moldar o Brasil de
acordo com suas ideias lunáticas do período pré-iluminista. O novo presidente
da Funarte acha que o rock leva ao aborto e ao satanismo. Segundo ele, os
Beatles surgiram para implantar o comunismo.
O homem que provavelmente vai liderar a
Fundação Palmares afirma que não há racismo no Brasil. A escravidão, diz ele,
era "benéfica para os descendentes". A ministra da Família, Damares
Alves, recomenda a abstinência como o melhor remédio contra a gravidez na
adolescência. Isso pode ser tecnicamente correto, mas não é uma política de
Saúde responsável e decidida com base na realidade: isso é fundamentalismo
religioso ao estilo iraniano.
Por último, mas não menos importante,
Olavo de Carvalho agora pôde apresentar sua versão da história do Brasil no
canal estatal TV Escola. Carvalho é um teórico da conspiração e extremista de
direita, poderia encarnar muito bem um professor louco num filme de Hollywood.
Agora ele é a estrela orientadora intelectual do governo brasileiro. Não
Voltaire, Rousseau, Kant ou, para mencionar um
pensador humanista excepcional brasileiro, Leandro Karnal: mas
sim Olavo de Carvalho, com suas baixarias. Pode-se imaginar para onde se dirige
um país que se comprometeu com a idiotice total.
O efeito do desprezo à iluminação,
ao conhecimento e à razão é um discurso público cada
vez mais baixo e ridículo. Além disso, tem consequências fatais, não
só na Amazônia. Um exemplo simples: por antipatia pessoal o presidente mandou
desativar quase todos os radares fixos no país. O efeito: os acidentes graves
cresceram no país, e as rodovias têm alta de acidentes com vítimas pela primeira
vez desde 2011. Qualquer pessoa mais ou menos inteligente poderia ter previsto
isso.
A política agrícola é igualmente brutal
e antimoderna. Não se concentra num cultivo sustentável de alimentos com cada
vez menos pesticidas, mas sim em cada vez mais agrotóxicos. Só neste
ano 467 pesticidas foram aprovados, um novo recorde. Segundo o Greenpeace,
desses produtos, 22 contêm ingredientes ativos que têm seu uso proibido na
União Europeia; 25 constam na lista dos produtos extremamente ou altamente tóxicos
à saúde humana. Ironicamente, uma das últimas levas de novos registros colocou
mais 57 produtos no mercado no dia 3 de outubro, quando se comemora o Dia
Nacional da Abelha. Somente entre dezembro de 2018 e fevereiro de 2019, foram
registradas as mortes de 500 milhões desses polinizadores por conta do uso de
agrotóxicos.
Os agrotóxicos contaminam os rios do
Brasil, como o São Francisco. E, claro, envenenam também a população. Entre
2007 e 2014, foram registradas quase 2 mil mortes por intoxicação agrícola. É
cientificamente comprovado que, mesmo em pequenas doses, os inseticidas causam
sérios problemas, principalmente em crianças, como alteração no QI, déficit de
atenção, hiperatividade, autismo e transtornos psiquiátricos. Uma política
sensata orientada para o bem-estar da população faria, portanto, tudo para
limitar a utilização de pesticidas. Em vez disso, o governo expande seu uso
para satisfazer os interesses lucrativos das indústrias agrícolas e químicas.
Outro exemplo dessa política
fanaticamente cega: o Excludente de Ilicitude em Operações de Garantia da Lei e
da Ordem que o presidente tanto deseja. Ele corresponde na prática a uma
licença para matar, como qualquer estudioso da área de segurança iria
confirmar. Parece que no Rio o excludente já está em vigor. Em 2019, a polícia
do estado matou tantas pessoas como não matava desde quando começaram as
estatísticas, em 1998. Muitas vezes os mortos não são criminosos, mas crianças
como a menina Ágatha, de oito anos.
De certa forma, é então consequente que
o novo partido do presidente, Aliança pelo Brasil, se apresente com um logo
feito de pistolas e balas. Não livros que ensinam, mas balas que matam. Por
exemplo, os primeiros e sábios habitantes do Brasil.
Autor: Philipp Lichterbeck queria abrir um novo
capítulo em sua vida quando se mudou de Berlim para o Rio, em 2012. Desde
então, ele colabora com reportagens sobre o Brasil e demais países da América
Latina para jornais na Alemanha, Suíça e Áustria.
Nenhum comentário:
Postar um comentário