O
que o “socialismo do século XXI” fez com a Venezuela é um dos piores
cataclismos da história.
Fernando Vicente
O segundo homem forte da Venezuela,
Diosdado Cabello, enfurecido porque, devido à vertiginosa inflação que açoita
sua pátria, o bolívar desapareceu de circulação e os venezuelanos só compram e
vendem em dólares, pediu a seus compatriotas que recorram ao “escambo” para
desterrar do país de uma vez por todas a moeda imperialista.
É certeza que os desventurados
venezuelanos não lhe farão o menor caso, porque a dolarização do comércio não é
um ato gratuito nem uma livre escolha, como acreditava o dirigente chavista, e
sim a única maneira pela qual os venezuelanos podem saber o valor real das
coisas em um país onde a moeda nacional se desvaloriza a cada instante pela
pavorosa inflação —a mais alta do mundo— à qual a Venezuela foi
levada por seus irresponsáveis dirigentes, multiplicando o gasto público e
imprimindo moeda sem respaldo. A alusão de Cabello ao escambo é uma diáfana
indicação desse retorno à barbárie que a Venezuela vive desde que, em um ato de
cegueira coletiva, o povo venezuelano levou o comandante Chávez ao poder.
O escambo é a forma mais primitiva do
comércio, aqueles intercâmbios que nossos remotos ancestrais realizavam e que
alguns pensadores, como Hayek, consideram o primeiro passo dados pelos homens
das cavernas em direção à civilização. Certamente, comercializar é muito mais
civilizado que matar-se entre si a pauladas, como faziam as tribos até então,
mas suspeito que o ato decisivo para a desanimalização do ser humano tenha
ocorrido antes do comércio, quando nossos antecessores se reuniam na caverna
primitiva, ao redor de uma fogueira, para contar histórias. Essas fantasias
atenuavam o espanto em que viviam, temerosos da fera, do relâmpago e dos piores
predadores, as outras tribos. As ficções lhes davam a ilusão e o apetite de uma
vida melhor que aquela que viviam, e dali nasceu talvez o primeiro impulso para
o progresso que, séculos mais tarde, nos levaria às estrelas.
Neste longo trânsito, o comércio
desempenhou um papel principal, e boa parte do progresso humano se deve a ele.
Mas é um grande erro acreditar que sair da barbárie e chegar à civilização é um
processo fatídico e inevitável. A melhor demonstração de que os povos podem,
também, retroceder da civilização à barbárie é o que ocorre justamente na
Venezuela. É, potencialmente, um dos países mais ricos do mundo, e quando eu
era criança milhões de pessoas foram para lá procurar trabalho, fazer negócios
e em busca de oportunidades. Era, também, um país que parecia ter deixado para
trás as ditaduras militares, a grande peste da América Latina de
então. É verdade que a democracia venezuelana era imperfeita (todas são), mas,
apesar disso, o país prosperava num ritmo sustentado. A demagogia, o populismo
e o socialismo, parentes muito próximos, fizeram-na retroceder a uma forma de
barbárie que não tem antecedentes na história da América Latina e
talvez do mundo. O que o “socialismo do século XXI” fez com a Venezuela é um
dos piores cataclismos da história. E não me refiro só aos mais de quatro
milhões de venezuelanos que fugiram do país para não morrer de fome;
também aos roubos abundantes com os quais a suposta revolução enriqueceu um
punhado de militares e dirigentes chavistas cujas gigantescas fortunas fugiram
e se refugiam agora naqueles países capitalistas contra os quais clamam
diariamente Maduro, Cabello e companhia.
As últimas notícias publicadas na Europa
sobre a Venezuela mostram que a barbarização do país adota um ritmo frenético.
As organizações de direitos humanos dizem que há 501 presos políticos
reconhecidos pelo regime, e, apesar disso, isolados e submetidos a tortura
sistemáticas. A repressão cresce com a impopularidade do regime. Os corpos de
repressão se multiplicam, e o último a aparecer agora opera nos bairros
marginais, antigas cidadelas do chavismo, mas transformados, devido à falta de
trabalho e à queda brutal dos níveis de vida, em seus piores inimigos. As
surras e assassinatos a rodo são incontáveis e querem sobretudo, mediante o
terror, fortalecer o regime. Na verdade, conseguem aumentar o descontentamento
e o ódio contra o Governo. Mas não importa. O modelo da Venezuela é Cuba:
um país sonâmbulo e petrificado, resignado à sua sorte, que oferece praias e
sol aos turistas, e que ficou fora da história.
Infelizmente, não só a Venezuela retorna
à barbárie. A Argentina pode imitá-la se os argentinos repetirem a loucura
furiosa destas eleições primárias, em que repudiaram Macri e deram 15
pontos de vantagem à dupla Fernández/Kirchner. A explicação deste desvario? A
crise econômica que o Governo de Macri não conseguiu resolver e que duplicou a
inflação que assolava a Argentina durante o mandato anterior. O que falhou?
Penso que o chamado ”gradualismo”, o empenho da equipe de Macri em não exigir
mais sacrifícios de um povo extenuado pelos desmandos dos Kirchner. Mas não deu
certo; mais do que isso, agora os sofridos argentinos responsabilizam o atual
Governo —provavelmente o mais competente e honrado que o país teve em muito
tempo— das consequências do populismo frenético que arruinou o único país
latino-americano que tinha conseguido deixar para trás o subdesenvolvimento e
que, graças a Perón e ao peronismo, retornou a ele com perseverante entusiasmo.
A barbárie se assenhora também da
Nicarágua, onde o comandante Ortega e sua esposa, depois de terem massacrado
uma corajosa oposição popular, voltou a reprimir e assassinar opositores graças
a umas forças armadas “sandinistas” que já se tornaram idênticas àquelas que
permitiram a Somoza roubar e dizimar esse desafortunado país. Evo Morales, na
Bolívia, dispõe-se a ser reeleito pela quarta vez como presidente da República.
Fez uma consulta para ver se o povo boliviano queria que ele fosse novamente
candidato; a resposta foi um não taxativo. Mas não lhe importa. Declarou que o
direito a ser candidato é democrático e se dispõe a se eternizar no poder
graças a eleições manufaturadas à maneira venezuelana.
E o que dizer do México? Escolheu
esmagadoramente López Obrador, em eleições legítimas, e no país prosseguem os
assassinatos de jornalistas e mulheres a um ritmo aterrador. O populismo começa
a carcomer uma economia que, apesar da corrupção do Governo anterior, parecia
bem orientada.
É verdade que há países como o Chile
que, diferentemente dos já mencionados, progridem a passos de gigante, e
outros, como a Colômbia, onde a democracia funciona e parece fazer avanços,
apesar de todas as deficiências do chamado “processo de paz”. O Brasil é
um caso à parte. A eleição de Bolsonaro foi recebida no mundo inteiro
com espanto, por suas saídas de tom demagógicas e suas exortações militaristas.
A explicação desse triunfo foi a grande corrupção dos Governos de Lula e Dilma
Rousseff, que indignou o povo brasileiro e o levou a votar numa tendência
contrária, não uma claudicação democrática. Certamente, seria terrível para a
América Latina que também o gigante brasileiro começasse o retorno à barbárie.
Mas não ocorreu ainda, e muito dependerá do que o mundo inteiro, e sobretudo a
América Latina democrática, faça para impedi-lo.
Autor:
Mario Vargas Llosa – El País
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