Em tom provocativo, bravateiro e
profundamente ideológico, o discurso de Bolsonaro na ONU consolida
estratégia de ruptura total com o multilateralismo e o desenvolvimento sustentável.
Pior que isso, o faz com mentiras e omissões grosseiras sobre a situação de
desrespeito e retrocessos na política e nos direitos socioambientais no Brasil
de hoje.
Bolsonaro fez o discurso de abertura da 74ª Assembleia Geral da ONU em Nova York
Senão
vejamos:
1ª falácia de Bolsonaro na ONU:
No início do discurso o presidente
afirma que o Brasil está abrindo a economia e nos integrando às cadeias globais
de valor. Afirma ainda que “já estamos adiantados, adotando as práticas
mundiais mais elevadas em todos os terrenos, desde a regulação financeira “até
a proteção ambiental”. Basta googar “meio ambiente” e “Bolsonaro” e
mesmo o leitor menos atento à agenda socioambiental se deparará com centenas,
senão milhares de notícias de diferentes meios de comunicação retratando, não
somente discursos, mas atitudes, omissões e atos administrativos flagrantemente
contrários a essa afirmação.
2ª falácia
Em seguida o presidente afirma “meu
governo tem um compromisso solene com a preservação do meio ambiente e do
desenvolvimento sustentável em benefício do Brasil e do mundo.” Podemos indicar dezenas de atitudes recentes que demonstram o exato oposto.
Aqui nesta minha coluna temos feito isso com alguma constância, por dever de
ofício (Veja a lista AQUI). Mas destaco uma atitude recente que julgo
reveladora do extremo oposto a esse trecho do discurso acima referido que esse
governo do presidente Bolsonaro vem empreendendo. A permanente e dura pressão
que o Ministro de Infraestrutura, do “seu governo”, está fazendo sobre o
Deputado Kim Kataguiri (DEM-SP), relator do Projeto de Lei 3729, de 2004, que
trata da Lei Geral de Licenciamento Ambiental, com o único propósito de
dispensar obras de infraestrutura de interesse governamental (sobretudo obras
viárias na Amazônia) dos cuidados e precauções ambientais é algo tão inédito
quanto evidente e irresponsável. E contraria o exposto nessa parte do discurso.
3ª falácia
O presidente afirma que “nossa Amazônia
é maior do que a Europa Ocidental “e permanece praticamente intocada”. Prova de
que somos um dos países que mais protegem o meio ambiente.” Fala como se tal
condição fosse mérito do seu governo. Afirmação Falsa! Primeiro porque a
Amazônia não permanece intocada, e já faz algum tempo. Porque? Além do
desmatamento e da queimada, óbvios indicadores de ocupação e exploração do
território, existe a chamada “degradação florestal” que é a exploração
florestal (seletiva de madeira), que acontece em grande escala (em sua maioria
ilegal) em praticamente todo território Amazônico, sobretudo nas regiões mais
próximas às estradas (até 100 km), inclusive as não pavimentadas. Nem falo do
garimpo e outras atividades ilegais que ocorre em toda Amazônia (veja dados do
Imazon).
Além de falso, o discurso é cínico pois
o que ainda está protegido (o que não quer dizer que está 100% preservado) está
nessa condição porque há unidades de conservação e terras indígenas ameaçadas
pelo próprio presidente e seus ministros. Não foi uma nem duas vezes este ano
(além da campanha presidencial) que o presidente e seu ministro de meio
ambiente bravataram que pretendem rever a criação das Unidades de Conservação
feita pelos governos anteriores ou que pretendem abrir os territórios indígenas
para exploração madeireira, garimpeira e até para pecuária. A conhecida
afirmação presidencial “nem mais um milímetro de terras indígenas” apenas
corrobora o apreço público que o presidente tem pelos direitos indígenas.
Se ainda temos pouco mais de 80% de
florestas em pé no Bioma Amazônia é por ação responsável e corajosa dos
governos anteriores que Bolsonaro trata como “ideológicos” e dos povos
indígenas que o presidente não hesita em atacar diuturnamente.
4ª falácia
Bolsonaro afirma que os “nativos querem
e merecem usufruir dos mesmos direitos de que todos nós”. Falso! Primeiro
porque ele mesmo se contradiz noutro momento de seu discurso quando afirma:
“Existem no Brasil 225 povos indígenas, além de referências de 70 tribos
vivendo em locais isolados. Cada povo ou tribo com seu cacique, sua cultura,
suas tradições, seus costumes e principalmente sua forma de ver o mundo”.
Portanto, ele mesmo reconhece que cada
povo vê o mundo de forma diferente, logo não podemos trata-los sem considerar
seus diferentes modelos de desenvolvimento e de práticas culturais. O fato de
muitos povos terem ou estarem em contato com não-indígenas há décadas ou até
séculos não resulta ou significa que querem ou valorizam as mesmas coisas.
Tampouco significa naturalmente que nossa sociedade dita moderna ou
contemporânea seja necessária e obviamente um modelo ideal e sonhado por todos
os povos indígenas.
O fato de quererem e terem direito de
acesso computador, internet e celular, ou painel solar fotovoltaico não quer
dizer que querem agrotóxicos e esgotos nos seus rios, supressão de suas
florestas, e prédios sobre prédios em seus territórios. Ademais o senhor
Presidente jurou respeitar e fazer cumprir a constituição então faço um apelo
para que a leia com atenção, sobretudo os seus artigos 231 e 232. A falsa
afirmação de que eles têm os mesmos direitos que os não-índios é uma afirmação
que contraria a nossa constituição, de forma flagrante e explícita.
5ª falácia
O presidente, que resolveu extinguir
autoritariamente o Fundo Amazônia, maior programa socioambiental da história do
Brasil, e recusar o apoio da Alemanha e da Noruega de mais de R$3 bi de
recursos não-reembolsáveis, afirmou que a Alemanha e a França usam mais de 50%
de seus territórios para agricultura, e que “o Brasil usa apenas 8% de terras
para a produção de alimentos.”
Mesmo que tivéssemos somente 8% do
território brasileiro dedicado à produção de alimento (o que está longe de ser
verdade), e supondo que toda produção agrícola fosse destinada a alimentar os
mais de 208 milhões de brasileiros, teríamos mais hectares por habitante
(0,32ha/hab.) do que na Alemanha (0,21ha/hab.) que usa supostamente 50% de seu
território. Portanto tal comparação não faz nenhum sentido. Ainda mais se
considerarmos a história milenar de ocupação do território Alemão em comparação
com nossa história recente.
Entretanto, os dados da própria Embrapa
desmentem Bolsonaro, pois o Brasil destina mais de 30% de seu território à
produção de alimento. Ou o presidente nunca ouviu falar em pecuária? Se
esqueceu dos pecuaristas?
Essa falsa afirmação, se não por má-fé,
é de uma ignorância agropecuária inaceitável para um presidente eleito com
apoio total da Frente Parlamentar Agropecuária e da Confederação Nacional de
Agricultura e Pecuária (CNA).
Ainda que o presidente Bolsonaro tenha
se convertido ao veganismo e, portanto, não considerasse “carne” alimento, não
é aceitável que ele ignore que a pecuária extensiva brasileira ocupa, segundo
dados da própria Associação Brasileira da Indústrias de Exportação de Carnes
(Abiec), mais de 20% de todo território nacional. Ou mais de 164 milhões de
hectares em todo Brasil, dos quais 70 milhões somente na Amazônia. Lembro ao
leitor que mais de 95% dos desmatamentos na Amazônia são ilegais e 80% dele é
promovido para abrigar pecuária extensiva, sobretudo para legitimar posse
(ilegal, leia-se “grilagem”) de terras públicas na região.
6ª falácia
O presidente mais adiante em seu
discurso afirma “Nossa política é de tolerância zero para com a criminalidade, aí
incluídos os crimes ambientais”. Não faz muito tempo o presidente exonerou um
fiscal que o multou por infração ambiental ao ser flagrado com equipamentos de
pesca no interior de uma Estação Ecológica marinha no Rio de Janeiro. Também
não faz tempo o presidente apareceu ao lado de um senador de Rondônia
desautorizando fiscais do Ibama que haviam aplicado o perdimento dos bens e
maquinários usados em crime ambiental dentro de uma Floresta Nacional. A sanção
de perdimento dos bens usados em crime ambiental é prevista em lei e decreto
presidencial, inclusive no decreto reeditado pelo próprio Bolsonaro. Além disso
é pública a informação dos cortes de quase 30% nos recursos para atividades de
fiscalização ambiental em 2019.
O presidente assinou decreto criando
instância de “conciliação” com infratores ambientais que retira do Conama a
responsabilidade de julgamento das multas e transfere para comissões criadas e
nomeadas pelo Ministro do Meio Ambiente, como forma de travar e rever a
aplicação de multas já que o ministro não tem o controle sobre a aplicação
delas na ponta. Recentemente o presidente inclusive recebeu em seu gabinete
dezenas de garimpeiros cuja atividade ilegal na Amazônia é flagrante e
preponderante, sobretudo em terras indígenas.
Como resultado óbvio da comprovação de
tolerância zero para com a criminalidade ambiental os desmatamentos ilegais na
Amazônia brasileira estão aumentando significativamente nos últimos meses. Em
ritmo superior a 220% em relação ao mesmo mês de agosto do ano anterior, por
exemplo. E por dar transparência ao aumento do desmatamento o presidente do
Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) foi exonerado há poucas
semanas.
7ª falácia
Finaliza a parte “ambientalista” de seu
discurso afirmando que “rechaçamos as tentativas de instrumentalizar a questão
ambiental ou a política indigenista, em prol de interesses políticos e
econômicos externos, em especial os disfarçados de boas intenções.”
A verdade é infelizmente mais uma vez é
oposta. As consequências das atitudes e dos discursos erráticos antiambientais
do presidente é que estão alavancando reações internacionais (corporativas,
privadas e governamentais) contrárias aos interesses econômicos e comerciais
brasileiros. Como a moção do parlamento suíço essa semana contra a homologação
do acordo Mercosul - União Europeia e também anuncio de empresas que ameaçam
deixar de comprar produtos brasileiros na Europa, como o couro, oriundo de
criação de gado em área de desmatamento ilegal.
Não deve ser por acaso que a ministra da
Agricultura, Tereza Cristina, tem tido uma agenda internacional intensa este
ano para tentar compensar as perdas que provavelmente teremos como consequência
dessa irresponsável atitude presidencial, omitida no seu discurso na ONU.
Infelizmente mentiras presidenciais em
cadeia internacional não ensejam sanção jurídica ao emissor muito embora
ofendam moralmente milhões de brasileiros por ele “formalmente” representados.
Provavelmente o discurso mais mentiroso
da história da ONU passa a ser de um presidente brasileiro, líder dessa nação,
que até bem pouco tempo atrás dava exemplo de diplomacia, gestão pública,
política e direito no campo da sustentabilidade. Como diria o Macron, "c´est
la vie!".
Autor:
André Lima – Congresso em Foco
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