As
milícias brasileiras são formadas por policiais civis e militares e outros
oficiais altamente violentos, que cometem crimes com total impunidade, ocupando
áreas abandonadas pelo Estado (Parte 2 e final da série).
"O país possui 26 estados, e as perigosas milícias estão presentes em 18 deles"
Embora em relação ao tráfico internacional
de drogas o Primeiro Comando da Capital (PCC) seja o grupo criminoso mais
bem estruturado e mais importante do país, para o governo brasileiro essa não é
a organização mais perigosa em termos de estabilidade e segurança interna: são
os grupos paramilitares denominados no Brasil de milícias.
Segundo a explicação que me foi dada
pela Polícia Federal (PF), as milícias são formadas por oficiais que trabalham
em instituições de segurança pública, ou seja, são agentes da Polícia Civil, da
Polícia Militar e até do Corpo de Bombeiros, que cometem crimes com total
impunidade. "Encapuzados, trabalham para o Estado e para o crime",
disse um dos chefes da PF.
As milícias se dedicam à extorsão,
cobram impostos, controlam a venda de gás, transporte de passageiros, televisão
a cabo, aluguel de propriedades, organizam rifas ilegais, controlam o tráfico
de drogas, o tráfico de armas, o roubo de carga comercial, o roubo de
combustível e até se envolvem em mineração ilegal. De acordo com dados da PF,
somente no Rio de Janeiro elas faturam cerca de 100 milhões de dólares por ano.
No Brasil, as milícias se comparam com
Los Zetas, no México, um grupo armado a serviço do Cartel do Golfo, criado por
Osiel Cárdenas Guillén, ex-líder dessa organização criminosa, entre 2002 e
2003, no contexto de sua guerra contra o Cartel de Sinaloa, que queria invadir
seus territórios.
Los Zetas são formados por um grupo de
soldados de elite altamente treinados, que foram enviados ao estado de
Tamaulipas para combater o narcotráfico no final dos anos 90. Contudo, os
soldados mais bem treinados acabaram entrando nas fileiras do crime. Los
Zetas foram responsáveis por massacres indescritíveis, incluindo a chacina de
72 migrantes em San Fernando em 2010. Embora muitos de seus fundadores tenham
sido presos ou mortos, o grupo ainda existe no México.
O que é mais preocupante no Brasil
é justamente o fato de as milícias serem formadas por agentes estatais
ativos, treinados, equipados e "altamente violentos". Existem
diversos grupos de milícias em todo o país, mas, devido ao anonimato em
que trabalham, não se sabe a quantidade exata de grupos ou quantos membros
eles possuem.
O sociólogo brasileiro José Claudio
Souza Alves – que me enviou uma cópia de sua tese de doutorado na
Universidade de São Paulo (USP), intitulada Baixada Fluminense: a
violência na construção do poder, publicada em 1998 – explica os
antecedentes das milícias e o fenômeno da violência na Baixada Fluminense, no
Rio de Janeiro, região que abrange várias favelas e onde há altas taxas de
homicídios e de pobreza.
A existência das milícias, afirma Alves,
data da época da ditadura militar, nos anos 60, quando a Polícia Militar tinha
muito poder e, entre suas fileiras, começaram a se criar grupos de extermínio.
Com o tempo, alguns desses exterminadores se tornaram políticos, com cargos
eleitos pelo povo. A partir daí surgiram indivíduos que puderam construir
suas carreiras políticas "baseadas tanto no medo como no patrocínio",
ou seja, transmitindo terror, mas ao mesmo tempo dando donativos à população
pobre.
"Desse modo, surgiram mandatos
populares de assassinos, não como expressão da barbárie de uma sociedade à
margem da civilização [...], mas como possibilidades historicamente construídas
pelas relações de poder", afirma Alves em sua tese. Ele busca explicar que
esses grupos criminosos e essa violência que aparenta ser irracional nas
favelas não são causados pela pobreza, mas pela forma com que é
exercido o controle político, sendo os poderes políticos o que permite que
as milícias atuem.
Nos anos 70 e 80, a violência aumentou
na Baixada Fluminense e depois se espalhou, atribuindo ao Rio de Janeiro a
alcunha de lugar mais violento do mundo. Em 1994, 1995 e 1996, a taxa
de homicídios dolosos no Rio foi de 74, 67 e 57 mortes por cem mil
habitantes, respectivamente. As histórias de terror nas favelas se
propagaram pelo mundo.
Segundo a Polícia Federal, quando o
Comando Vermelho (CV) – o terceiro maior grupo criminoso em atividade no
Brasil – deu início às suas operações em 1979 no Rio, composto de excondenados
por crimes comuns e presos políticos da ditadura, ele passou a se instalar em
áreas marginais da cidade, ou seja, nas favelas.
Alguns setores do Rio começaram a
contratar membros da Polícia Militar para protegê-los de ataques, extorsões e
sequestros do CV. Dessa forma, esses grupos compostos de agentes das forças
públicas começaram a ocupar espaços que o Estado havia deixado abandonados. É
claro que, no final das contas, as milícias passaram a cometer crimes contra
aqueles que as criaram.
Em entrevista à Agência Pública, Alves
explicou que as milícias têm grupos responsáveis por execuções sumárias.
"O comerciante que não quiser pagar, o morador que não se sujeitar a
pagamento do imóvel que ele comprou, qualquer negócio e discordância com os interesses
da milícia, esse braço armado é acionado e vai matar", afirmou.
O sociólogo lembrou que a família
do presidente de extrema direita Jair Bolsonaro – e o próprio
mandatário – já apoiou o discurso de pessoas como o ex-deputado estadual José
Guilherme Godinho Sivuca Ferreira, vinculado a grupos de extermínio (milícias)
e que costumava dizer que "bandido bom é bandido morto". Bolsonaro, afirma Alves, disse que
policiais militares são heróis e que está criando uma lei que os protegerá por
uma cláusula de "excludente de ilicitude", que concederá impunidade
às milícias.
O filho mais velho do presidente, o
ex-deputado estadual Flávio Bolsonaro, foi o candidato ao Senado mais votado no
Rio em 2018. Desde antes de seu pai assumir a Presidência do país, ele estava
sendo investigado por suposto desvio de dinheiro público e lavagem de
dinheiro. A investigação constatou que duas
pessoas que trabalhavam para ele têm ligação direta com Adriano Magalhães da
Nóbrega, um dos chefes da milícia Escritório do Crime. Em julho do ano
passado, o Supremo Tribunal Federal (STF) ordenou a suspensão da investigação
contra Flávio Bolsonaro.
A Polícia Federal me mostrou um mapa do
Brasil. O país possui 26 estados e, segundo esse mapa, as perigosas milícias
estão presentes em 18 deles – mais da metade do quinto maior país do mundo.
Autora:
Anabel Hernández – Jornalista escreve há anos sobre cartéis de drogas e
corrupção no México. Por seu trabalho, recebeu o Prêmio Liberdade de
Expressão da DW em 2019.
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