Um processo de mutação cognitiva cuja finalidade é desumanizar crianças e adolescentes e produzir fascistas, alerta Ricardo Nêggo Tom.
O projeto de poder teocrático e extremista de direita segue avançando dentro da sociedade mundial, conceituando sociologicamente a questão. E um dos alvos principais deste roteiro macabro e globalizado, são as crianças e adolescentes. Numa espécie de paráfrase de um pedido feito por Jesus Cristo, que recomendou que deixasse que as crianças fossem até ele, os extremistas usam Jesus como fachada para o seu projeto de destruição, e desejam que as crianças vão até eles e os ajudem a construir o reino do fascismo na terra. Um reino que ao invés de jorrar leite e mel – como a terra prometida descrita na Bíblia - jorra sangue e fel por todos lados. Como antítese da Canaã próspera e abundante prometida ao povo de Israel, o mundo da extrema-direita louva a destruição, a fome e a morte.
A militarização da educação pública no Brasil atende ao objetivo principal de doutrinar mentes em formação, estimular um raciocínio voltado para o preconceito contra as chamadas minorias, e instar os recrutados a promoverem uma guerra sociocultural no país. Tomemos como exemplo um vídeo (https://x.com/lazarorosa25/status/1994739852261085541) que está circulando nas redes sociais, onde alunos de um colégio cívico-militar de Curitiba estão cantando uma música que faz apologia ao ódio e à violência contra a favela. Os chamados “cantos de guerra” comumente entoados durante treinamentos e exercícios militares, estão sendo introduzidos nas escolas para tornar lúdica a lobotomia a qual estão sendo submetidos os estudantes.
Um trecho da “canção” diz: “Homem de preto o que é que você faz? Eu faço coisas que assustam o satanás. Homem de preto qual é sua missão? Entrar na favela e deixar o corpo no chão”. Aqui temos uma clara criminalização dos moradores das favelas, classificando a todos, sem exceção, como bandidos e alvos de uma perseguição institucional por parte das forças de segurança do Estado. Ao mesmo tempo, vemos um lapso de coerência na licença poética apresentada na letra da música em questão, quando um modelo de ensino que se diz alinhado a moral, a fé cristã e aos bons valores, se propõe a fazer algo que nem satanás – o inimigo imaginário da fé cristã – jamais faria e ficaria assustado se visse alguém fazer. Como diria aquela música dos Engenheiros do Hawaii: “o fascismo é fascinante e deixa gente ignorante fascinada”
Como uma espécie de escolinha dominical do cristofascismo, a educação cívico-militar não apenas suprime a autonomia e a liberdade de pensamento e existência dos alunos, mas sobretudo, produz seres humanos que irão suprimir a autonomia e a liberdade de pensamento e existência dos outros. E isto será feito por meios opressores, violentos e até letais, como sugere a canção de guerra citada anteriormente. Não há ineditismo em tal projeto, mas apenas a repetição de uma tragédia como farsa. A Juventude Hitlerista foi um exemplo, quando crianças e jovens alemães, entre 6 e 18 anos de idade, eram obrigados a se alistar na instituição para serem treinados de acordo com os interesses nazistas. Assim como Hitler, os extremistas brasileiros sabem que o modelo de escola pública no país não é capaz de “fascistizar” a juventude. Por isso, é preciso propor novos modelos educacionais que favoreçam seus planos, sob a égide da qualificação do ensino.
Eu consideraria que estamos diante de uma tentativa de impor um modelo cívico-teocrático-militar, onde a linguagem religiosa cristã é introduzida para dar mais legitimidade ao projeto. Deus como a base da educação, o Estado como seu representante legítimo, e os alunos como instrumentos de sua vontade e futuros soldados que defendem a manutenção da ordem teocrática-militar dentro de uma “nova” civilização. A invasão neopentecostal nas escolas e universidades do país, promovendo intervalos bíblicos e supostos cultos de avivamento e conversão onde alunos entregam suas almas para Jesus, é parte de um roteiro que conta com a colaboração de muitos representantes do Estado. Inclusive, do campo progressista. Uma farsa que nos levará a uma tragédia social que pode se configurar como o nosso apocalipse particular. Um conto da aia na vida real que causará muita dor e ranger de dentes.
Uma das estratégias utilizadas para rebater os críticos desse projeto cristofascista, é dizer que aqueles que se opõem são do mal, pertencem ao diabo e que estão incomodados com a presença de Jesus na educação brasileira. Nada é de novo no front, mas é algo que ainda conta com muito apelo popular por invocar o cristianismo como defensor da ideia. Para potencializar ainda mais o projeto e atrair mais adeptos e simpatizantes, artistas e personalidades estão sendo recrutados, ou se permitindo recrutar, para fortalecer o discurso de transformação social através da conversão ao “reino de Deus”. As atividades dos “Legendários das montanhas” – onde artistas e empresários se submetem a uma espécie de treinamento militar para se reconectarem com a sua essência divinamente masculina – são um exemplo. Sem falar na adesão de artistas completamente esquecidos pelo público, que resolverem aparecer transtornados, digo, transformados, e defendendo fascistas como se estivessem produzindo arte.
Quando a teóloga alemã Dorothee Sölle cunhou o termo “cristofascismo”, ela chamava a atenção para o revisionismo evangélico que os seus artífices fariam para tentar desconstruir a ideia de um Cristo voltado para a promoção da igualdade e defesa dos pobres e marginalizados. Até porque, instituído como um símbolo de poder e realeza divina e terrena num mundo injusto e desigual, Jesus, o “rei dos reis”, não poderia estar ao lado dos menos favorecidos. Ele seria um justo juiz. E a sua justiça, dentro de uma visão cristofascista, consiste em naturalizar as desigualdades e os preconceitos, legitimar a violência imposta contra a “rebeldia” daqueles que lutam contra eles e santificar aqueles que reprimem toda e qualquer tentativa de tornar o mundo um ambiente mais igual, mais justo e mais fraterno.
Quando o deputado Nikolas Ferreira declarou que “Jesus não veio acabar com a pobreza, ele veio pagar um preço que ninguém poderia pagar”, e Bolsonaro afirmou que “Jesus Cristo não comprou uma pistola porque não tinha naquela época", eles estavam propagando uma fé cristofascista que diviniza o ser humano e humaniza o ser divino à imagem e semelhança do transmissor da mensagem. Ambos defendem a morte, seja como salvação religiosa, seja como salvação social. A ideia de que foi preciso Jesus morrer em alto grau de dor e sofrimento para que a humanidade tivesse vida eterna, e que ele teria uma arma para se defender dos seus perseguidores à época, sugere que devemos entregar a nossa vida pelo “projeto de salvação”, e matar todos aqueles que se opõe a ele para fazer a vontade de Deus.
Uma lógica fascista alicerçada em princípios ideológicos e estratégias de comunicação que sustentam e defendem sistemas políticos autoritários e ultranacionalistas, suprimindo subliminarmente o conceito de democracia e os direitos individuais. Uma essência extremista que reside na primazia absoluta do Estado sobre o indivíduo, na crença em hierarquias naturais e na designação de homens escolhidos por Deus para fazer a sua vontade na terra e na justificação da violência para atingir objetivos políticos a pretexto da defesa dos interesses nacionais. Nesta lógica prevalece o culto a um líder, a padronização do comportamento e a glorificação da guerra e da força e estratégia militares como meios para se promover a grandeza da nação. O nosso conto da aia nunca esteve tão próximo da materialização.
Autor: Ricardo Nêggo Tom - Músico, graduando em jornalismo, locutor, roteirista, produtor e apresentador dos programas "Um Tom de resistência", "30 Minutos" e "22 Horas", na TV 247. Publicado no site Brasil 247.
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