“Uma das
maneiras de lidar com a experiência da tortura e da violência extrema do Estado
é não ficar lembrando o tempo todo de detalhes senão você não sobrevive. Isso
não foi só minha mãe. Esse modo de reagir, tocar a vida, cuidar dos filhos é
algo realizado pelas milhares de Eunices que tem até hoje no Brasil. A mulher
do Amarildo, a família da Marielle. São as Eunices que seguram a onda e ficam
em busca da Justiça, as mães de Maio, as mães do massacre de Osasco, todos os
dias tem grupo de mães buscando justiça diante do absurdo da violência do
Estado que permanece”.
“Eu me preocupo menos com a punição stricto sensu daqueles responsáveis pela
morte do meu pai, por exemplo, – e eu gostaria de ver isso – e mais que se
entenda a punição pela violência de Estado mais amplamente, que não se fique
perdoando os caras [da polícia] que toda hora estão matando gente”.
Relembro esses dois trechos da inspiradora entrevista com a psicóloga Vera
Paiva, filha de Eunice e Rubens Paiva, que o Brasil conheceu na figura da adolescente
Veroca, no filme Ainda Estou Aqui, premiado com o Oscar e assistido por mais de
5 milhões de brasileiros. A conversa foi na quarta à noite, em uma live da
Agência Pública.
A ideia era falar sobre a ditadura pós golpe de 1964, que completou 61 anos
nesta semana, mas chegamos rapidamente a um de seus legados mais nefastos: a
permanência da violência do estado na redemocratização. Ainda hoje, agentes do
estado decidem quem tem direito à vida, como se vê nas operações policiais em
periferias de todo o país. Ainda hoje, Eunices choram a morte sem sentido nem
justiça de maridos e filhos, como lembrou Veroca.
Assustada
com a criminalidade e insuflada por políticos oportunistas e ineptos para
traçar políticas de segurança eficientes, boa parte da população brasileira
se torna cúmplice da violência indiscriminada das polícias como forma de
combate ao crime, vítima de uma desinformação que o comportamento errático
da mídia ajuda a disseminar.
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É o
que se viu claramente no caso da ADPF das favelas, concluída hoje pelo
Supremo Tribunal Federal, com a aprovação conjunta de ações de combate ao
crime organizado, envolvendo a Polícia Federal e a Receita, e de medidas
para reduzir a letalidade policial, com a exigência, por exemplo, de
câmeras nos uniformes e do planejamento de operações policiais dentro de um
plano de segurança pública coerente, sempre comunicadas ao Ministério
Público, que tem entre suas atribuições a fiscalização das polícias.
Volto ao que eu disse antes sobre o comportamento oscilante da mídia:
durante o debate sobre a ADPF, enquanto o jornalismo investigativo trazia
provas do envolvimento do estado com as milícias, levantava dados e
entrevistas com especialistas mostrando que a violência de estado mata
indistintamente criminosos e inocentes sem tornar a cidade mais segura,
havia todo um noticiário policial frenético em que distorções em favor de
operações policiais violentas se tornaram rotineiras e o clamor por
repressão policial abafou o debate sobre políticas de segurança
consistentes.
Sem falar no excesso de espaço dedicado a declarações políticas sem
contestação, caso do governador Cláudio Castro e do prefeito Eduardo Paes,
que atribuem o descontrole do estado no combate ao crime à exigência de
legalidade nas operações policiais por parte de associações comunitárias,
organizações de direitos humanos e da própria Justiça.
A imparcialidade fajuta, como vimos tantas vezes na política, também dá o
ar de sua graça nesse tema, quando se busca contrapor o imperativo legal e
humanitário de garantir a dignidade, a liberdade e a inviolabilidade de
direitos de quem mora na favela à necessidade de combater o crime com
violência. Na verdade, como demonstram estatísticas e pesquisas, o excesso
de força não reduz a criminalidade, coloca em risco a vida dos moradores
das favelas e dos próprios policiais, além de incentivar a corrupção dos
agentes do estado.
Para ficar em um número revelador, retirado de um excelente vídeo de
Cecília Oliveira, do Fogo Cruzado, que monitora os tiroteios do Rio de
Janeiro: entre 2008 e 2020, mesmo com a alta letalidade das operações
policiais, as áreas dominadas por milícias cresceram 400%, e as do Comando
Vermelho, 57%. Hoje o crime organizado domina mais de 20% do território da
Grande Rio.
Para quê então a polícia carioca matou tanto?
A decisão desta quinta-feira do STF é um incentivo para que os governos
passem a tratar com seriedade, apoiados na ciência e no respeito aos
direitos de todos os brasileiros, a questão da segurança pública, que é sim
primordial para a população. Vamos esperar que a imprensa contribua de
forma consistente para o debate público informado em vez de ceder ao mesmo
sensacionalismo e populismo que acomete os políticos, sobretudo os de
direita.
Não podemos mais deixar que as mães lutem sozinhas por Justiça. As nossas
Eunices não almejam ser heroínas, o que elas querem é dignidade, seus
filhos e maridos vivos e um país em que os direitos de todos os brasileiros
sejam respeitados como prega a Constituição de 1988, o nosso pacto da
redemocratização.
Autora:
Marina Amaral - Diretora Executiva da Agência Pública. marina@apublica.org -
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