Sua obra nos ensinou a desconfiar do poder, inclusive do poder sedutor das palavras de quem escreve.
Mário Vargas Llosa morreu. Com ele, se vai um dos maiores nomes da literatura latino-americana, e talvez um dos mais contraditórios. Como é possível se indignar com as atrocidades narradas em A Festa do Bode (La fiesta del chivo), sentir a dor dos camponeses de Canudos em A Guerra do Fim do Mundo (La guerra del fin del mundo), ou se perder nas ruas de Miraflores com A Tia Júlia e o Escrevinhador (La tía Julia y el escribidor) — depois de ter atravessado os corredores opressivos de Batismo de Sangue (La ciudad y los perros), esse verdadeiro Ateneu peruano que expõe a formação brutal de jovens dentro de um colégio militar —, e, ainda assim, não ignorar que o autor dessas obras passou seus últimos anos como defensor ferrenho da extrema direita mundial?
Vargas Llosa é — e continua sendo — um dos meus autores favoritos. E talvez por isso o incômodo agora seja tão grande. Não é fácil aceitar que o mesmo escritor que me ensinou a desconfiar do poder, a rir da hipocrisia das instituições e a mergulhar nas contradições humanas tenha passado a apoiar discursos que parecem negar tudo isso. Vargas Llosa é uma figura que desafia nossas categorias fáceis de admiração ou repulsa. Sua obra é, sem dúvida, um dos grandes pilares da literatura latino-americana contemporânea. Com um talento narrativo raro, ele recriou momentos históricos de forma vívida, universal e profundamente humana. Conseguiu nos transportar para a República Dominicana do terror do ditador Rafael Trujillo com a mesma maestria com que resgatou a saga sertaneja de Canudos, recriando o sertão nordestino com a precisão de quem estudou Euclides da Cunha — e foi além dele.
O autor que já foi simpatizante do comunismo na juventude se tornou, para muitos, uma caricatura da desilusão ideológica. A censura a escritores em regimes autoritários — como no caso do cubano José Lezama Lima, silenciado após a publicação de Paradiso, romance de formação marcado por um amor homossexual e uma estética barroca incompatível com os padrões revolucionários — começou a corroer seu entusiasmo com a esquerda. Candidato à presidência do Peru em 1990, derrotado por Fujimori, Llosa percorreu um caminho que o levou a apoiar figuras que representam o oposto dos valores democráticos que sua literatura tantas vezes exaltou. Dizem os filósofos populares — com alguma razão — que “não há nada pior que um ex-comunista”. Essa máxima parece se aplicar com ironia à trajetória de Vargas Llosa.
E, no entanto, como negar a força literária de Pantaleão e as Visitadoras (Pantaleón y las visitadoras), sátira afiada sobre a moral militar e a hipocrisia institucional em meio à selva amazônica — leitura que talvez causasse urticária em patriotas brasileiros tão entusiasmados com fardas quanto alheios à literatura que as ridiculariza? Ou de Travessuras da Menina Má (Travesuras de la niña mala), romance que percorre décadas e cidades pelo olhar de um amor obsessivo que espelha as transformações políticas e afetivas do século XX? Como resistir ao lirismo que atravessa O Caderno de um Curador (El héroe discreto), com sua narrativa sobre ética, vingança e lealdade em uma sociedade em transição, ou à intensidade labiríntica de Conversas na Catedral (Conversación en La Catedral), onde um jornalista tenta, entre memórias e perguntas, entender em que momento o Peru se perdeu? Ler Llosa em espanhol é uma experiência quase mística. Sua voz, seu ritmo, sua construção de cena são de uma habilidade técnica que poucos escritores da língua alcançaram. Você se sente transportado aos lugares descritos — sente o cheiro do café nas ruas de Lima, o calor seco de Canudos, o medo sufocante na República Dominicana de Trujillo. A linguagem não é apenas um meio, mas um corpo vivo que nos arrasta para dentro da história.
Mas talvez essa dor, essa contradição que sentimos diante de sua morte, seja privilégio de quem leu sua obra. E aqui me pergunto — será que muitos ainda leem Vargas Llosa? Será que o mundo vai lembrar dele como escritor genial ou como figura política controversa? E me pergunto mais: será que os que hoje exaltam Vargas Llosa como ícone do conservadorismo realmente leram sua obra? Será que enxergam, em A Festa do Bode, uma crítica implacável ao autoritarismo que hoje tantos romantizam? Ou em A Guerra do Fim do Mundo, a denúncia dos massacres cometidos em nome da ordem e do progresso? A ambiguidade se torna mais cruel quando percebemos que muitos que o defendem politicamente talvez ignorem o que ele escreveu — enquanto os que o leem com profundidade são os mesmos que hoje se decepcionam com o homem. Talvez a contradição não esteja apenas em Llosa, mas no modo como o usamos — ou esquecemos — de acordo com nossas conveniências.
Aqui reside a ambiguidade insuportável — e fascinante. O homem Vargas Llosa, que nos provoca incômodo ético, não apaga o escritor genial que ele foi. Sua obra permanece viva, vibrante e porque não dizer, necessária. Talvez por isso o desconforto seja tão grande: como aceitar que a mesma mão que nos ofereceu páginas de beleza e denúncia tenha sido, ao mesmo tempo, cúmplice de discursos reacionários? Talvez a resposta esteja na própria literatura. O bom livro não pede submissão; exige pensamento. A boa arte não nos conforta, ela nos desafia. “Passo pano” para a literatura, não para o político. Porque, no fim, talvez essa seja a maior ironia de Llosa: sua obra nos ensinou a desconfiar do poder, inclusive do poder sedutor das palavras de quem escreve.
Autora: Paola Jochimsen é doutoranda em Filosofia pela Universidade de Coimbra, Mestre em Romanistik pela Albert-Ludwigs-Universität Freiburg (Alemanha). Membro do Coletivo Brasil-Alemanha pela Democracia. Publicado no Site Brasil 247.
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