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1 de agosto de 2024

Autuados por trabalho escravo receberam mais de R$ 1 bilhão em isenções fiscais!

  

Foto de Cícero R. C. Omena (CC-BY-2.0).

Entre as beneficiadas estão gigantes das bebidas, como Heineken e Ambev. Usina de açúcar conseguiu isenção dois anos depois de ser flagrada por manter 45 cortadores em condição análoga à escravidão Ao menos dezoito empresas autuadas nos últimos anos por submeterem seus trabalhadores a condições análogas à escravidão receberam R$ 1,1 bilhão em isenções fiscais do governo federal em 2021, único ano cujos dados de benefícios foram divulgados pelo Ministério da Fazenda. O levantamento de O Joio e O Trigo mostra como o orçamento público vem sendo distribuído a empresas acusadas de não cumprir integralmente a legislação trabalhista. Entre essas empresas estão as gigantes cervejeiras Ambev e Heineken que, em 2021, viram fiscais do trabalho libertarem 23 motoristas terceirizados que atuavam em condições degradantes para uma de suas prestadoras de serviço. Naquele mesmo ano, as multinacionais receberam R$ 62,5 milhões em renúncias fiscais do governo federal – R$ 45,6 milhões para a Ambev e R$ 16,9 milhões para Heineken. As cervejarias dizem que tomaram medidas para punir os responsáveis pelo caso e garantir indenizações aos trabalhadores assim que souberam da situação (veja notas ao fim da matéria). Criada como uma forma de incentivo à economia nacional, a política de isenções vem sendo alvo de críticas por gerar gastos ao governo e não exigir contrapartidas das empresas beneficiadas. No levantamento constam também empresas menores, como a Usina São José que em uma operação do Ministério do Trabalho e Emprego de 2019 aparece como responsável por manter 45 cortadores de cana em situação análoga à escravidão no interior de Pernambuco. Dois anos depois, a usina foi beneficiada com isenção de R$ 3,7 milhões. A usina afirmou em nota que a acusação não tem fundamento e que o caso foi arquivado sem punição. Ao todo, 1.028 trabalhadores foram resgatados em 15 operações nas empresas premiadas com renúncia fiscal ou em seus fornecedores, situação em que a lei prevê que as empresas contratantes também sejam responsabilizadas. Uma das beneficiadas, a multinacional de produtos químicos Basf, foi autuada duas vezes em 2023. Como fizemos O Joio teve acesso a relatórios de operações contra o trabalho escravo do Ministério do Trabalho e os comparou com a lista de isenções fiscais publicada pelo Ministério da Fazenda em 2024, que mostra dados relativos ao ano de 2021. Para esse cruzamento, foram considerados apenas benefícios e autuações relacionados ao mesmo CNPJ, o que exclui corporações que foram autuadas e beneficiadas em CNPJs diferentes. Se fossem consideradas todas as empresas de um mesmo grupo, seriam 38 pessoas jurídicas, incluindo uma das maiores recipientes de isenção fiscal naquele ano, a Vale, que foi autuada por trabalho escravo em um CNPJ (33.592.510/0044-94) e recebeu R$ 19,2 bilhões em outro (33.592.510/0001-54).

 

Ano de autuação    Razão Social                          Valor Renúncia Fiscal (R$)

2011                    Arthur Lundgren Tecidos S/A         R$   1.165.000,46

2012                   Racional Engenharia Ltda              R$      417.730,23

2012                   Viena Siderúrgica S/A                     R$ 70.458.223,71

2013                   Cemig Distribuição S.A.                  R$ 55.139.598,26

2014                   Alliance One Brasil Exp.Tabacos    R$      860.213,06

2014                   Gestão & Higienização Têxteis.      R$          3.069,43

2014                   ENESA Engenharia S.A.                 R$        78.097,03

2014                   MRV Construções Ltda                   R$          4.030,19

2016                   Via Veneto Roupas Ltda                  R$    1.365.040,00

2018                   Danone Ltda                                  R$   44.416.307,00

2019                  Usina São José S.A.                       R$    3.740.763,42

2021                 CTA - Continental Tobaccos            R$      245.396,13

2021                 Ambev S.A.                                      R$   45.636.067,00

2021                Cervejarias Kaiser Brasil S/A            R$   16.961.254,78

2022                Ditrasa Maq.Implem. Agricolas         R$          49.000,00

2022                WD Agroindustrial Ltda                     R$          34.757,08

2023                BASF S.A.                                         R$   715.535.592,87

2023               CDHU - São Paulo                             R$          221.088,68

Fonte: Ministério do Trabalho e Emprego (2010-2023); Ministério da Fazenda (2024, dados relativos ao ano de 2021).

Uma política surreal O economista José Luís Oreiro, professor do Departamento de Economia da Universidade de Brasília, afirma que “existe lógica” por trás da ideia de conceder benefícios fiscais para empresas ou setores da economia que o governo considere estratégicos ou que estejam passando por dificuldades. Mas, ao analisar os dados levantados pela reportagem, o economista disse que eles mostram o estado “surreal” da política de isenção fiscal no Brasil. “Você está dando R$ 1 bilhão de isenção para empresas que sequer estão cumprindo a legislação trabalhista. Isso é surreal”, afirmou. “Acredito que empresas que não cumprem a lei e, mais grave ainda, a lei trabalhista, uma vez autuadas, têm que perder automaticamente a isenção.” Críticos do programa de incentivo afirmam que o governo federal deveria rever os critérios e as condições para uma empresa justificar o recebimento da ajuda. “É necessário desenvolver no Brasil uma sistemática e periódica avaliação dos custos e benefícios da isenção fiscal”, disse Oreiro. “O que a isenção está trazendo de retorno para a sociedade em termos de criação de renda e de emprego, de aumento de exportações ou de redução de importações? Porque, se não [está trazendo nada], é dar dinheiro de graça pra empresário botar no bolso. E tem alguns que são mais gananciosos que outros que, além de botar dinheiro no bolso, ainda exploram o trabalhador. Isso é um absurdo.” Sem isenções Brasil poderia ampliar em três vezes o Bolsa Família Em seu segundo mandato, a partir de 2007, o presidente Lula concedeu uma série de renúncias fiscais para promover o crescimento econômico, e o governo deixou de arrecadar R$ 102,1 bilhões. Essa política foi aprofundada nos anos seguintes, quando o Brasil sofreu os reflexos do estouro da bolha do mercado imobiliário norte-americano em 2008. A ideia era deixar de cobrar impostos para que as empresas investissem esse dinheiro em produção, criassem novos empregos e aumentassem salários. As desonerações explodiram durante o governo Dilma Rousseff, que deixou de arrecadar R$ 277 bilhões em 2015. Mais tarde ela se diria arrependida da ampliação da política. As isenções seguiram durante os governos Temer e Bolsonaro, com novos setores sendo agraciados, mesmo sem comprovação de que o benefício de fato gerava impacto positivo na economia. Ao analisar as contas do governo de 2023, o Tribunal de Contas da União (TCU) calculou que o país renunciou a R$ 519 bilhões em impostos no ano passado. O ministro Vital do Rêgo argumentou que, se tivesse cobrado esse valor das empresas, o governo poderia ampliar em até três vezes o Bolsa Família ou acabar com o déficit da Previdência. O atual ministro da Fazenda, Fernando Haddad, tem criticado as isenções e buscado formas de limitá-las para aumentar a arrecadação do governo.

Autores: Adriano Wilkson e Luiz Fernando Toledo. Artigo originalmente publicado no site O Joia e o Trigo (https://ojoioeotrigo.com.br/).

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