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1 de agosto de 2024

Aline Blaya: Mais um dia que não acaba há quase três semanas!

 

À esquerda, a Estátua do Laçador, símbolo oficial de Porto Alegre, desde 1992. Criada pelo escultor pelotense Antônio Caringi, a estátua foi tombada em 2001 como patrimônio histórico da capital gaúcha. À direita, à placa de bem-vindo a Porto Alegre. Ambas ficam na entrada da cidade, próximo ao Aeroporto Internacional Salgado Filho. Fotos: Rafael Stedile.

Faz frio em Porto Alegre e mais um dia começa cinza. Manhã de sábado, de um dia que não acaba há mais de duas, quase três semanas. Não sabemos se ou quando acabará.

E o hino do Rio Grande do Sul, que aprendemos quando criança, ecoa na minha cabeça, ora para o bem, ora para o mal:

“Sirvam nossas façanhas de modelo a toda terra.”

A façanha da natureza. A façanha da gestão pública irresponsável e incompetente. A façanha do povo que se une e faz pelos seus. A façanha do povo que aproveita um momento de dor alheia para roubar, estuprar, abandonar.

Que não sirvam nossas façanhas de modelo à toda terra. Há tempos me dei conta, e foi em um longo processo de cura, de que não quero e não preciso de façanhas na vida. Nem as minhas e nem as “nossas”. Há tempos me dei conta de que a vida é uma constante, uma dádiva, feita de luz e sombra e só isso… sem façanhas…

As façanhas são mais um produto do capitalismo da escassez e do egoísmo, que nos incutem na cabeça que a vida precisa ser e é luta. Não, não é. Não precisa ser. Esse ano um amigo que convidou para estudar um novo livro marxista, uma amiga querida me incentivou a voltar a escrever artigos de opinião, outro amigo me disse que me buscaria para irmos à Romaria da Terra.

A todos eles eu disse… Dessa vez não, estou de férias da revolução. Estou de férias da dor da nossa gente sofrida, tô de férias da luta. Determinei que a meta deste ano era pegar mais sol, dar mais risada, amar, o mar, cuidar do corpo e da alma, ler livros leves e só…Mas… daí…


A parede do imóvel guarda as digitais da altura a chegaram as inundações em alguns pontos de Porto Alegre. Foto de Rafael Stedile.

A pessoa resolve ser leve, admirar borboletas e flores, justamente em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. Terra das façanhas e das contradições. Onde nem tudo que se planta cresce e onde nem sempre o que mais floresce é o amor.

Terra de um lendário Getúlio Vargas, chamado de pai dos pobres, que perseguiu Luiz Carlos Prestes e entregou Olga Benário a Hitler. E que teve a rua com seu nome, no bairro chamado ironicamente de “Menino Deus”, invadida por 2 metros de água do esgoto na semana passada.

Terra do governador Eduardo Leite que em um momento pede amparo ao mundo e agradece Elon Musk e em outro diz que as toneladas de ajuda que chegam podem atrapalhar o comércio local, e que, à lá Bolsonaro, segundo a Folha de S. Paulo, diz que, embora a meteorologia tenha previsto uma possível catástrofe no RS, o estado possuía outras agendas prioritárias…


 Avenida dos Estados, próximo ao Aeroporto Internacional Salgado Filho, em Porto Alegre. Foto: Rafael Stedile.

Como tirar férias da revolução?

Como viver de novo em um vórtex que, como na pandemia, parece nos engolir sem ter nem uma corda onde se segurar?

Hoje, no Rio Grande do Sul, milhares de pessoas lutam para manter minimamente uma rotina e alguma dignidade. Seja em um abrigo como refugiado climático, seja cuidando do próximo, seja apenas tentando se manter a salvo.

Porém, simplesmente não se sabe o dia de amanhã. Há duas semanas vi amigos queridos perdendo a casa, os móveis, o carro e o pior… a dignidade e a memória afetiva de uma vida inteira. Meus pais estavam seguros. Ontem já não estavam mais. O bairro onde moram passou a ser alagado e surgiu o risco grande de desabamento dos morros.

Quem está trabalhando nos resgates e nos abrigos já está em uma fase de esgotamento físico e mental, adoecedor. Quem está sem casa, sem os seus, nem se fala.

Não há amanhã. Amanhã pode chover de novo.

 

Porto Alegre, entulhos por todo lado. Foto: Rafael Stedile.

E o prefeito não fez a manutenção das bombas… e o governador revitalizou o cais e queria tirar o muro de contenção de enchentes da Mauá.

Este mês teve incêndio em um prédio ocupado por pessoas sem moradia, e que viviam, como contam os que velaram seus mortos, em sub condições. Vivemos em município, um estado, que vive hoje a façanha de acomodar em um cenário de guerra, milhares de desabrigados enquanto milhares de imóveis estão vazios e destinados apenas a especulação imobiliária.

É sobre isso.

Tem horas que ou a gente tira férias da revolução ou junta a saúde mental do lixo com uma pazinha. Mas, férias tem prazo para acabar e são fundamentais para garantir a exploração da força de trabalho ou o capitalismo não as permitiria.

Fim de férias.

Ontem teve panelaço para derrubar o prefeito, hoje tô aqui escrevendo, amanhã vamos fazer lingerie para as mulheres que estão nos abrigos… As cozinhas comunitárias não param, a captação de ajuda em todo canto não para, e não pode parar… É, e sempre será, a organização do povo a única saída. Não se trata de nenhuma façanha e sim de estratégia de sobrevivência.

Tô voltando de férias, vou ali encontrar os meus para, como diz Krenak, adiar o fim do mundo. Vamos juntos. Eu preciso, Porto Alegre e o Rio Grande do Sul precisam disso, talvez o Brasil precise disso, o mundo também. Mais e mais frequentemente parece que precisamos que a natureza nos ajude a ver que talvez seja momento de suportar mais uns aos outros e de pensar, não em façanhas, mas do que temos feito do nosso agora e nos colocou diante disso tudo.

Só desejo que esse longo dia acabe em uma manhã de sol como a que parece iniciar no momento em que termino este texto, aqui em Porto Alegre, Rio Grande do Sul.

Autora: Aline Blaya Martins: Professora da Faculdade de Odontologia e do Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Publicado no Site VioMundo.

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