Muros foram
sempre um símbolo do medo. Atualmente os muros invisíveis são ainda mais
graves, porque nos separam espiritualmente!
Numa noite de 9 de novembro, há 29
anos, o mundo despertou com a alegre notícia de que o Muro de Berlim, de
130 quilômetros, conhecido como “muro da vergonha”, tinha começado a ser
derrubado, permitindo que as duas metades da cidade dividida voltassem a se
abraçar. Se as muralhas de pedra, da chinesa até as de hoje, passando pela
romana de Adriano, foram sempre um símbolo do medo em relação ao inimigo,
atualmente os muros invisíveis são ainda mais graves, porque também nos
separam espiritualmente.
Os muros de pedra e cimento que
continuam sendo erguidos no mundo revelam a incapacidade de saber viver
fisicamente em liberdade, enquanto os muros invisíveis das ideologias que nos
separam, às vezes até mesmo entre amigos e familiares, são construídos com a
incapacidade de dialogar e de aceitar quem é diferente.
Se os muros físicos simbolizam a
incapacidade de resolver as diferenças usando os instrumentos das democracias
modernas, os muros invisíveis que erguemos por não saber ler a angústia e as
razões do outro podem nos conduzir a rupturas mais profundas e mais difíceis de
consertar.
Hoje, mais perigosos do que os muros
físicos são os muros invisíveis que dividem as classes sociais, que separam os
privilegiados do asfalto das periferias dos excluídos, os que possuem tudo
daqueles que não têm um mínimo para viver com dignidade. São também os muros
invisíveis que se tentam levantar, por exemplo, nas escolas e universidades
entre alunos e professores. Já não se trata da antiga luta de classes que
separava os trabalhadores dos patrões, e sim da que divide uma sociedade onde estão
desaparecendo os limites entre liberdade e barbárie, entre grosseria e cultura,
entre quem não abre mão de pensar e quem preferiria nos impor um
pensamento único.
Não há muro pior do que o levantado
entre o saber e a ignorância, que separa os satisfeitos dos desesperados, os
que se sentem donos da verdade daqueles que a buscam as tropeções, conscientes
de que ela não existe em estado puro. Existem só fragmentos dela, que o
pensamento e o coração de cada um vão montando para desenhar seus sonhos. E
querem que lhes deixem fazer isso livremente, sem dogmas ideológicos ou
religiosos.
Derrubado o Muro de Berlim naquele 9
de novembro de 1989, enquanto a liberdade corria pelas ruas e praças da cidade,
centenas de artistas anônimos se juntaram para criar, nos pedaços do muro ainda
em pé, a maior tela de pintura do mundo como expressão da grande festa da
liberdade.
Não era fácil ultrapassar aquele muro
de cimento nem mesmo com permissões oficiais. Consegui atravessá-lo seis meses
antes que fosse derrubado. Lembro-me da incômoda liturgia a que fui submetido
antes de poder passar de carro para o outro lado. Pude ver de perto o horror
daquelas cercas eletrificadas e as mandíbulas ferozes dos cães policiais. Mais
tarde eu soube, com dor, que aqueles animais adestrados para matar, testemunhas
dia e noite de tantos medos, desapareceram sem que se soubesse seu paradeiro.
Tudo ali, enquanto existia o muro, estava coberto pelo luto da segregação.
Aberta a primeira brecha de liberdade, centenas de artistas voluntários
chegaram para revestir os pedaços do muro com as cores da felicidade.
Quando os espaços para que possamos
nos expressar são fechados, está sendo morto o que o Homo sapiens tem
de mais nobre, sua capacidade de criar e inventar. É bom lembrar disso nestes
tempos de ansiedade e perplexidade que sacodem o Brasil, que se esforça para
não perder valores e liberdades que custaria tanto recuperar.
Autor: Juan Arias
– Publicado no Jornal El País
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