É inaceitável
que o Uruguai considere perseguido político alguém que a Justiça investiga como
suposto ladrão.
O ex-presidente do Peru Alan
García, cercado pela Justiça por causa de supostos casos de má gestão e
recebimento de propinas durante seu segundo governo em conexão com a construção
do metrô de Lima, optou por procurar asilo na Embaixada do Uruguai alegando
ser alvo de “perseguição política”.
O pretexto é simplesmente grotesco,
porque no Peru de hoje não há um único preso político e ninguém é perseguido
por suas ideias ou filiação partidária; e provavelmente nunca houve tanta
liberdade de expressão e imprensa quanto a que existe hoje no país.
Claro, o outro lado da moeda é que os
quatro últimos chefes de Estado estão sujeitos a investigação judicial por
suspeita de roubo e são investigados pelo Poder Judiciário, com ordens de
apreensão de seus bens, ou notificação de fugitivos. Ao mesmo tempo, o
ex-ditador Alberto Fujimori, condenado a 25 anos de prisão por seus
crimes, está refugiado no setor de cuidados intensivos da Clínica Centenário de
Lima, de onde, caso saia, retornará para a prisão da qual o tirou um imerecido
indulto do ex-presidente Pedro Pablo Kuczynski.
O ex-presidente do Peru Alan García alega a existência de um clima 'de perseguição política' no país desde que Martín Vizcarra assumiu o Executivo em março Foto: EFE/Ernesto Arias
Este último, também sob ordem de
prisão, é alvo de uma investigação judicial por lavagem de dinheiro, como o
ex-presidente Ollanta Humala, que, com sua mulher Nadine, passou dez meses em
prisão preventiva. Outro ex-presidente, Alejandro Toledo, fugiu para os Estados
Unidos quando foi descoberto que tinha recebido cerca de US$ 20 milhões em
propinas da Odebrecht e é agora objeto de um pedido de extradição feito pelo
governo peruano.
Esta coleção de presidentes suspeitos
de corrupção – aos quais me acuso de ter promovido e votado, acreditando serem
honestos – justificaria o mais grave pessimismo sobre a vida pública do meu
país. E, no entanto, depois de passar oito dias no Peru, volto animado e
otimista, com a sensação de que, pela primeira vez em nossa história
republicana, há uma campanha eficaz e corajosa de juízes e procuradores para
verdadeiramente punir os líderes e funcionários públicos desonestos, que se
aproveitaram de seus cargos para cometer crimes e enriquecer. É verdade que nos
quatro casos até agora há apenas uma presunção de culpa, mas os indícios,
especialmente em relação a Toledo e García, são tão óbvios que é muito difícil
acreditar em sua inocência.
Como em boa parte da América Latina, o
Poder Judiciário no Peru não tinha reputação de ser aquela instituição
incorruptível e sábia, responsável por zelar pelo cumprimento das leis e punir
os crimes; nem para atrair, com seus salários medíocres, os juristas mais
capazes. Ao contrário, a má reputação que o rodeava, fez supor que um bom
número de magistrados carecia da formação e da conduta devida para distribuir a
justiça e merecer a confiança do cidadão.
No entanto, de uns tempos para cá, uma
revolução silenciosa vem sendo operada dentro do Judiciário, com o surgimento
de um punhado de juízes e promotores honestos e capazes, que, correndo os
maiores riscos, e apoiado pela opinião pública, conseguiu corrigir essa imagem,
confrontando os poderosos – nos campos político, social e econômico – em uma
campanha que levantou os espíritos e encheu de esperanças uma grande maioria
dos peruanos. A corrupção é hoje na América Latina o maior inimigo da
democracia: a correo por dentro, desmoraliza a cidadania e semeia desconfiança
nas instituições que parecem nada mais do que a chave mágica que transforma os
crimes, delitos e privilégios em ações legítimas.
O que aconteceu no Brasil nos últimos
anos foi um anúncio do que poderia acontecer em todo o continente. A corrupção
havia se espalhado para todos os cantos da sociedade brasileira, comprometendo
igualmente empresários, funcionários, políticos e pessoas comuns, estabelecendo
uma espécie de sociedade paralela, submetida aos piores conchavos e
imoralidades, nos quais as leis eram sistematicamente violadas em toda parte,
com a cumplicidade de todos os poderes.
Contra este estado de coisas
levantou-se o povo, liderado por um grupo de juízes que, sob a lei, começou a
investigar e sancionar o envio para a cadeia daqueles que pelo seu poder
econômico e político se acreditavam invulneráveis. É o caso da Odebrecht, uma
empresa toda poderosa que corrompeu pelo menos uma dúzia de governos
latino-americanos para conseguir contratos para obras públicas bilionárias –
sem suas famosas “delações premiadas” os quatro ex-presidentes peruanos
estariam livres – e tornou-se pouco menos que o símbolo de toda aquela
podridão.
É isso que explica o fenômeno Jair
Bolsonaro. Não que 55 milhões de brasileiros tenham se tornado fascistas da
noite para o dia, mas que uma imensa maioria dos brasileiros, fartos da
corrupção que havia se tornado o ar que o Brasil respirava, decidiu votar pelo
que eles acreditavam ser a negação mais extremada e radical do que foi chamado
de “democracia” e era, pura e simplesmente, uma “delitocracia” generalizada. O
que acontecerá agora com o novo governo do caudilho abracadabra? Minha
esperança é que pelo menos dois de seus ministros, o juiz Sérgio Moro e o
economista liberal Paulo Guedes, moderem e se unam para agir dentro da lei e
sem reabrir as portas à corrupção.
Seria uma vergonha o Uruguai conceder
asilo a Alan García, que não está sendo investigado por suas ideias e ações
políticas, mas sim por delitos tão comuns como receber subornos de uma empresa
estrangeira que competia por contratos multimilionários para obras públicas
durante sua administração. Seria como fornecer uma fachada de respeitabilidade
e vitimismo a quem – se for verdade aquilo do qual ele é acusado – contribuiu
de maneira flagrante para desvirtuar e degradar a democracia que, com justiça,
este país sul-americano se ufana de ter mantido em grande parte da
história.
O direito de asilo é, sem dúvida, a
mais respeitável das instituições de um continente tão pouco democrático quanto
o foi a América Latina, uma porta de fuga contra ditaduras e ações terroristas
para silenciar os críticos, calar as vozes dissonantes e liquidar os
dissidentes. No Peru, conhecemos bem os tipos de regimes autoritários e brutais
que semearam muito da nossa história com sangue, dor e injustiça. Mas,
precisamente porque estamos cientes disso, não é justo nem aceitável que num
período como o atual, em que, em contraste com essa tradição, haja um regime de
liberdades e respeito pela legalidade, o Uruguai conceda a condição de “líder
politicamente perseguido” a um dirigente que a Justiça investiga como suposto
ladrão.
Os juízes e procuradores peruanos que
ousaram atacar a corrupção na pessoa dos últimos quatro chefes de Estado têm um
apoio da opinião pública que o Judiciário jamais teve em nossa história. Eles
estão tentando converter a realidade peruana em algo semelhante ao que o
Uruguai representou por muito tempo na América Latina: uma democracia de
verdade sem ladrões.
Autor:
Mário Vargas Llosa – Prêmio Nobel de Literatura
Tradução
de Cláudia Bozzo – Publicado no jornal O Estado de SP.
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