Francijane Lima dos Santos, autora deste texto - Foto Arquivo pessoal.
“A Terra
é o meu quilombo. Meu espaço é meu quilombo. Onde eu estou, eu estou. Quando eu
estou, eu sou.” (Beatriz Nascimento)
Essa fala de Beatriz Nascimento (mulher negra, historiadora, intelectual,
ativista do movimento negro, professora, escritora e feminista) é
representativa e nos dá fôlego para fortalecer a luta contra as facetas do
racismo e as desigualdades sociais, políticas, econômicas e culturais. Assim
como Beatriz Nascimento, é importante destacarmos outras mulheres negras que
vieram antes de nós, as que são presentes, e que contribuem para o pensamento
decolonial e para um mergulho profundo em nossas histórias, identidades e
raízes da nossa ancestralidade.
No Brasil, a desigualdade perpassa o fator classe, tendo também como marcadores sociais gênero e raça, temas destacados por Lélia Gonzalez, pensadora brasileira que influencia gerações de mulheres negras, graças ao seu ativismo e esforços, pelo qual aponta as desigualdades instauradas na sociedade, como também maneiras de resistir e lutar contra qualquer forma de opressão.
Na sociedade capitalista, o lugar das mulheres, e principalmente das mulheres negras, é posto em âmbito privado e possui características bem definidas: perpetua-se ao lar, ao cuidado dos filhos (seus e dos outros), ao trabalho doméstico que passa de geração para geração, dentre outras condições. Sempre gostei de estudar. E quando adolescente, a “patroa” disse: “coloque essa menina para trabalhar”. Na época, não entendia a dimensão dessa fala.
Venho de uma família de empregadas domésticas que perpassou por minha avó, minha mãe. Sempre gostei de estudar. E quando adolescente, a “patroa” disse: “coloque essa menina para trabalhar”. Na época, não entendia a dimensão dessa fala. E foi a partir de minha trajetória acadêmica que me encontrei nas leituras dessas intelectuais negras, por meio de suas escrevivências, e compreendi o lugar social que ocupava.
No mestrado desenvolvo pesquisa sobre o ingresso de mulheres negras por políticas de ações afirmativas na pós-graduação, suas trajetórias do ingresso à titulação, ou seja, sou 'sujeita' desse estudo.
Na
negativa da minha mãe e avó, houve um rompimento dessa trajetória de mulheres
empregadas domésticas, pois não permitiram que permanecesse nessa condição e
investiram em meus estudos. Com muitos esforços, me apoiaram e consegui entrar
na graduação de História. Não queria formatura, mas vovó fez questão de termos
esse momento. E confesso que foi lindo. Hoje, mestranda no Programa de
Pós-graduação em Educação, na Universidade Federal da Paraíba, rompi mais uma
barreira, pois ocupar esse espaço de poder, privilegiado, era algo impossível
até pouco tempo. No mestrado desenvolvo pesquisa sobre o ingresso de mulheres
negras por políticas de ações afirmativas na pós-graduação, suas trajetórias do
ingresso à titulação, ou seja, sou “sujeita” desse estudo.
Tenho me debruçado cada vez mais em autoras negras sobre a questão de ser
mulher negra nessa sociedade patriarcal, machista e sexista e as contribuições
das leituras têm fortalecido minha jornada até aqui, visto que consigo
revisitar meu passado e agradecer as minhas mais velhas por terem me permitido
adentrar nesses espaços.
Esse romper barreiras me fez refletir sobre o Itan de Ogum, o qual conta que,
certa vez, Ogum e outros orixás vinham se aproximando da Terra para ter contato
com os humanos. No entanto, havia uma barreira no caminho, uma pedra grande,
montanha. Os orixás não dispunham no momento de um instrumento adequado para
abrir/romper essa passagem, tentaram, porém, não conseguiram. Foi então que
Ogum, da própria rocha, forjou um instrumento e conseguiu abrir uma fenda e
conseguiram atravessar. Ou seja, ele rompeu uma barreira da impossibilidade e
tornou possível seu objetivo. Esse fender, romper barreiras é feito,
diariamente, por mulheres negras, uma vez que à medida que adentram lugares
hegemonicamente brancos, promovem uma transformação, uma revolução e
possibilitam a passagem para que cada vez mais, outras consigam
diversificá-los.
Agosto é um mês de celebração.
O mês de agosto é de celebrações e muita representatividade, temos o Dia Internacional dos Povos Indígenas, comemorado no dia 9. São mais de 500 anos de resistência e lutas por direitos básicos, como a demarcação de terras e o direito de existir com dignidade. Reconhecer a cultura e saberes indígenas é de suma importância para nossa sociedade, porque é por meio do conhecimento que podemos combater as desigualdades e desconstruir estereótipos segregadores.
Comemoramos no dia 12, o Dia Nacional da Juventude e uma de suas importantes pautas, é a educação, que deveria ser de qualidade e com a finalidade de mobilizar o indivíduo para uma visão de mundo e de si, capacitando-o para atuar e desenvolver consciência crítica de seu papel social e político. Refletir sobre os processos discriminatórios que sofrem os grupos sub representados ao longo da história é necessário para se promover ações e vejo na educação uma ferramenta importante, se pensada de fato para a emancipação dos indivíduos e não para alienação, pois tem potencial, mas infelizmente, capitalismo e Estado caminham de mãos dadas, e o segundo é o responsável por sua administração.
O dia 31 de agosto, Dia Internacional de Pessoas Afrodescendentes, foi criado
para dá visibilidade e promover a história, resistência, desafios e conquistas
diárias da população afrodescendente, como também entender o processo
afrodiaspórico, pois as “trajetórias agora se cruzam” (Hall, 2023, p.31), nos
tornam ricos culturalmente, mas não apagam a dores e as marcas deixadas pelo
passado colonial.
Desde que passei pela diáspora da minha vida, comecei a escrever cordel, um
gênero textual da literatura brasileira e muito significativo para o Nordeste.
E escrever sobre trajetórias de homens e mulheres negras sempre me deixa em
“estado de poesia”, pois essas pessoas significam muito para minha construção
social e política enquanto mulher negra. [Maria de Beja] é Mulher
preta, detentora de um importante saber: a reza.
Maria de Beja. Foto Arquivo pessoal.
Em 2023, participei da seleção nos editais culturais promovidos pela Lei Paulo Gustavo (Lei Complementar nº 195/2022) na minha cidade, Mamanguape (PB), apresentando o cordel¹: A Arte de Benzer de Dona Maria de Beja. Nascida na Santa Maria Madalena, em Mamanguape, aos 10 de julho de 1927, foi batizada como Maria Anunciada da Silva, é filha de Abidulina Maria da Conceição (natural de Santa Cruz) e Benjamin Ferreira (natural de Brejo de Bananeiras), e é conhecida carinhosamente por Maria de Beja. Mulher preta, detentora de um importante saber: a reza.
Neste mês
festivo, apresentar a história de vida de Dona Maria de Beja, e de tantas
outras Marias negras e protagonizar tantas trajetórias aquece nosso coração e
nos faz lutar por dias melhores.
Vejamos trechos de sua história:
...É bonito de se
vê
E para quem acredita
Dona Maria rezadeira
É uma cristã convicta
Com seu raminho na mão
Cura dores, purifica.
Aprendeu as suas rezas
Na primeira comunhão
Católica desde menina
Conhece toda oração
E para rezar as pessoas
Recebeu uma benção.
Disse que foi com raiva
Que aprendeu a rezar
Levando a filha Maria
Que estava a vomitar
Febre e obrando verde
À benzedeira foi aclamar.
Dona Maria reza
Gente de todo lugar
Da Paraíba ao RN
Só basta à casa chegar
Com seu raminho ou rosário
Ela vai lhe ajudar.
Para cada doença
Certa planta, oração
Mau olhado, vento caído
Ela reza com pinhão
E espinhela caída
Com seu rosário na mão.
Com a Santíssima
Trindade
Arritirai senhor
Uiado, quebranto, quizila
Tudo quanto ruim for
Dor nos nervos, carnes, ossos
Vento caído, sartador.
Rezadeiras são mulheres
De sabedoria ancestral
Sua história de luta e fé
É legado cultural
E Dona Maria de Beja
É um tesouro local...
Notas
¹ Produto realizado com recursos da Lei Paulo Gustavo, no edital
Professora Sevy de Produção Artístico Cultural. Lei Complementar nº 195, de 8
de julho de 2022. Operacionalização: Secretaria de Cultura, Prefeitura
Municipal de Mamanguape, 2023. Para obter o cordel completo, enviar e-mail para
a autora.
Autora: Francijane Lima dos Santos é bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento
de Pessoal de Nível Superior, CAPES, Brasil. Mestranda em Educação na
Universidade Federal da Paraíba – PPGE-UFPB. Graduada em História pela
Universidade Federal da Paraíba. Uma cordelista em processo de aprendizagem.
(francyjane.lima@gmail.com).
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