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1 de junho de 2024

A crise climática legitimada pelo discurso econômico!

  

Reprodução Secom - Foto de Lauro Alves.

Em meio a um dos maiores desastres climáticos no Brasil, os legisladores do país aprovaram uma lei que enfraquece as normas de proteção ambiental. Na Câmara dos Deputados, com exceção dos partidos do PT, PC do B, PV, PSOL, Rede e PSB, todos os demais votaram pela flexibilização da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei 6.938/1981).

O projeto prevê a exclusão das atividades silviculturais da lista de atividades potencialmente poluidoras, o que permite dispensar o licenciamento ambiental das produções em larga escala do eucalipto. Agora, cabe ao presidente da República sancionar ou não. 
Essa mudança na legislação nos espanta, mas não nos surpreende. Para suavizar a publicidade de normas que dão continuidade a atividades notadamente prejudiciais ao meio ambiente, em especial no contexto da emergência climática, tornou-se habitual para os legisladores e executores de políticas públicas atribuírem a elas a um marketing sustentável, uma espécie de greenwashing da lei. 

O argumento dos deputados favoráveis segue a lógica falaciosa de associar qualquer tipo de atividade agropecuária à proteção do meio ambiente pela simples natureza vegetal da atividade. Argumentam que a plantação de eucalipto é importante para a formação de florestas e a captação de carbono, mas desconsideram as florestas nativas que são derrubadas, a biodiversidade que se perde a partir da monocultura e as inúmeras consequências socioeconômicas nos territórios em que se desenvolvem. 

No entanto, para além da roupagem sustentável, esse tipo de lei é legitimada por argumentos teóricos que há séculos permitem a destruição do planeta em nome do progresso e da liberdade econômica, por mais absurda que seja a desvinculação da economia de seu domínio ambiental. Mais do que o marketing sustentável de políticos e empresas, são os princípios teóricos de uma ciência econômica que há muito tempo não soluciona as questões materiais para a reprodução plena da vida humana e que fundamentam a destruição ambiental. Esses princípios estão respaldados por uma convenção política que faz da técnica científica seu escudo contra todo tipo de crítica e movimento por mudança. 

Por isso, esses projetos de leis, que deveriam parar o país no contexto em que vivemos, passam despercebidos pela maior parte da sociedade, e continuam fomentando a destruição ambiental e econômica como uma prática necessária para o desenvolvimento das economias de mercado capitalista.  

A monocultura de eucalipto no Vale do Jequitinhonha 

Uma das regiões que mais serão impactadas com a mudança na legislação será o Vale do Jequitinhonha, na região nordeste de Minas Gerais. Desde que o progresso se tornou a justificativa ideal para privatizar as riquezas comuns da região, a monocultura de eucalipto é a principal atividade fomentada pela modernização conservadora do campo. Esse processo se deu a partir da década de 1970, quando, seguindo uma lógica desenvolvimentista da economia de mercado, identificaram na região vantagens comparativas para a produção de insumos energéticos para a indústria siderúrgica. 

Desde então, iniciou-se um intenso processo de transformação da região, pelo qual as terras tradicionais e costumeiras das chapadas, fundamentais para a sustentabilidade econômica e ambiental da região, têm se tornado gradativamente um deserto verde de eucalipto. A expansão da monocultura do eucalipto continua a pleno vapor, crescendo ano a ano. A produção está concentrada especialmente nas áreas altas de chapadas no Cerrado do Alto/Médio Jequitinhonha, majoritariamente na microrregião de Capelinha, localidade marcada pela maior presença da agricultura familiar em todo o Vale. 

Vamos aos números

Segundo o Censo Agropecuário realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2007, a microrregião apresentava 1.896 estabelecimentos agropecuários produtores de eucalipto, ocupando uma área cortada de 7.508 hectares. Em 2017, os estabelecimentos saltaram para 4.210, ocupando uma área de 26.048 hectares. Ou seja, enquanto houve um aumento de 122% do crescimento dos estabelecimentos produtores de eucalipto, o crescimento da área cortada foi de quase 247%. 

Segundo estudo do Centro de Agricultura Alternativa Vicente Nica (CAV), cerca de 60% das terras rurais já estão tomadas por eucalipto no Alto Jequitinhonha, com destaque para a produção da Aperam Bioenergia, empresa com sede em Luxemburgo e que descende do conglomerado multinacional da ArcelorMittal. Na esteira dessas transformações, a participação dos estabelecimentos familiares na região do Vale do Jequitinhonha caiu de 85% para 75% do total, entre 2007 e 2017, enquanto na microrregião de Capelinha a retração foi de 88% para 72,4% de estabelecimentos familiares. 

Apesar da participação absoluta dos estabelecimentos familiares ainda ser superior, a área ocupada por eles representa apenas cerca de 30% do total de áreas ocupadas nas regiões, o que expressa a extrema concentração fundiária estabelecida pela chegada das empresas de eucalipto. A realidade descrita pelos números é preocupante. Diante de eventos climáticos cada vez mais extremos e frequentes, a monocultura de eucalipto representa um dos principais vilões ambientais denunciados por cientistas e ambientalistas. 

Se em um primeiro momento a monocultura destrói a biodiversidade do Cerrado, extinguindo fauna e flora essenciais para a reprodução do campesinato, posteriormente ela intensifica os fenômenos de escassez hídrica em uma região já conhecida pelo convívio com a seca. Desde 1990 houve uma redução da vazão da água em rios, córregos e nascentes da região. 

Além de reduzir a disponibilidade da água pura e de maior qualidade com origem em nascentes, os dados censitários apontam para um processo de concentração desse tipo de recurso hídrico em estabelecimentos patronais. As nascentes reduziram em 15% entre 2007 e 2017 na microrregião de Capelinha, no entanto, apesar da redução geral, o número de estabelecimentos patronais com nascente aumentou, enquanto o número de familiares diminui, passando de 84,6% para 71,5% do total de estabelecimentos com esse tipo de recurso hídrico. 

Observa-se também a contaminação do lençol freático e as inúmeras denúncias ambientais decorrentes do indevido uso e descarte de agrotóxicos pelas empresas de eucalipto nas áreas de chapadas, local de recarga das nascentes do Alto Jequitinhonha.

Ondas de calor

As consequências desse avanço são ainda mais assustadoras quando consideramos as variações climáticas na região. Em 2023, as cidades da região alcançaram os maiores índices de aumento da temperatura em todo Brasil, contexto já previsto Índice Mineiro de Vulnerabilidade Climática (IMCV), lançado pela Fundação Estadual do Meio Ambiente em 2015, que já apontava a alta vulnerabilidade das cidades do Jequitinhonha. Enquanto a cidade de Araçuaí, localizada no Alto Jequitinhonha, registrou a maior temperatura de todo o Brasil em 2023, o maior aumento se deu nos territórios com monocultura de eucalipto, como Turmalina, Leme do Prado, Capelinha, Veredinha e Itamarandiba.

Desse modo, se mesmo com o controle pelo licenciamento existente há um crescimento desenfreado da monocultura de eucalipto no Vale do Jequitinhonha, a retirada desse instrumento tende a acelerar e agravar o processo de supressão dos meios de vida dos povos locais, promovendo a perda da biodiversidade e a intensificação da escassez hídrica na região, tornando-a mais vulnerável à seca e ao aumento da temperatura nas cidades.

Por economias que se adaptam e combatem a crise climática 

Não bastasse as consequências ambientais diretamente associadas com a monocultura do eucalipto, a mudança na lei terá como consequência direta o enfraquecimento da sustentabilidade econômica proveniente da reprodução do campesinato regional. Por isso, a realidade do Vale do Jequitinhonha é sugestiva para interpretarmos como os fundamentos econômicos neoliberais legitimam o discurso e a prática da destruição ambiental, ao passo que destroem outras economias que se reproduzem nos territórios, garantindo a sustentabilidade econômica e ambiental.

Na essência do progresso e da liberdade econômica existe uma realidade econômica desenhada por atores externos, como políticos, tecnocratas e empresários, que definem a região como o “Vale da Miséria”, termo disseminado desde os primeiros projetos de desenvolvimento para a região, e que a caracterizam como um espaço sem dinamismo econômico e que depende do capital econômico externo para alcançar o desenvolvimento. 

É curioso observar que, para instaurar-se no território e apropriar-se das riquezas que ali existem, os agentes econômicos definem o espaço como pobre e miserável, mas, ao mesmo tempo, possuem como principal interesse a exploração da riqueza que ali existe. Diante dessa perspectiva hipócrita e contraditória, esses agentes se apresentam como salvadores da região, dotados da única solução possível para o combate da pobreza regional: a exploração privada da riqueza. É assim há pelo menos 50 anos, do eucalipto ao lítio, e cada vez mais fantasiado com o discurso da sustentabilidade. 

Por outro lado, há uma realidade econômica historicamente formada e vivida por sua população, constituindo uma economia diversificada e inserida nos domínios da cultura e da natureza regional. Para a população local não há dúvidas de que se trata de uma economia rica. Como apontam vários estudos, é uma terra com abundância de alimentos e biodiversidade, formada pela histórica experiência de união entre o humano, a terra e os outros seres que nela habitam. 

As informações censitárias também não deixam escapar uma realidade com forte tradição camponesa, marcada pela diversidade produtiva e pela predominância relativa de uma população feminina e negra à frente dos estabelecimentos rurais familiares, que, dotada de condições mínimas, garante terra, trabalho, água, alimento e preservação ambiental para os povos da região. Essa organização econômica oriunda do território mostrou-se mais adaptada e resiliente aos eventos climáticos, apesar da ação contrária promovida pela monocultura de eucaliptos. Entre 2012 e 2019 a região passou por uma das maiores secas já observadas, no entanto, as consequências foram distintas do que era historicamente observado. Dessa vez, não se verificou o esvaziamento de áreas rurais, como nas grandes secas do passado. 

Diferentes motivos ajudam a compreender esse fenômeno, como a concepção da “convivência com o semiárido”, o aumento das pluriatividades e rendas não agrícolas derivadas da maior inserção nas áreas urbanas da região, como também a mobilização de agricultores e organizações públicas para a aplicação de um conjunto de inovações técnicas e institucionais que asseguraram água para a população rural. Desse modo, foi possível amenizar os impactos socioeconômicos da seca e reduzir o clientelismo histórico combinado ao fenômeno. 

Percebe-se, portanto, que a economia que legitima o desastre ambiental não é única e exclusiva, mas sim uma construção política que vigora na essência do sistema capitalista. Assim, o contraste econômico da região joga luz ao impacto das economias diante da crise climática. Se por um lado a monocultura do eucalipto acelera as mudanças climáticas em curso, em nível local e global, destruindo a biodiversidade, gerando escassez hídrica e graves problemas socioeconômicos, por outro, as economias camponesas ditam a reprodução de sistemas econômicos adaptados e mais resilientes às mudanças climáticas, gerando inúmeras externalidades positivas para uma região de alta vulnerabilidade e propondo um modelo de reprodução mais próspero. 

Por isso, diante da emergência climática, é urgente que o paradigma econômico norteador da legislação e das políticas públicas se oriente por uma concepção substantiva e planejada, que entenda a economia como o processo pelo qual a sociedade deve satisfazer suas necessidades materiais e garantir qualidade de vida. 

Para isso, é preciso colocar o ser humano e o meio ambiente no centro dos processos econômicos, organizando os sistemas econômicos como parte do domínio natural e a serviço da qualidade de vida humana. Isso ressalta a importância dos biomas, das águas, dos alimentos e dos arranjos institucionais costumeiros constituídos na simbiose entre cultura e natureza, retomando a necessidade do planejamento e da participação social em todo o ciclo das políticas públicas. 
 

Autor: Tomás de Faria Balbino é doutorando em Economia Regional e Urbana pelo Cedeplar/UFMG, pesquisador bolsista do Instituto de Economia Aplicada (IPEA) e membro e pesquisador do Instituto Economias e Planejamento (IEP).

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