As revelações do hacker Walter Delgatti à CPMI dos atos golpistas aproximaram ainda mais o ex-presidente Jair Bolsonaro do banco dos réus e da prisão. Delgatti, que possui em seu currículo ter invadido trocas de mensagens entre o ex-procurador federal Deltan Dallagnol e membros da Operação Lava Jato, deixando a nu ilegalidades e sujeiras cometidas por esta turma, contou que antes das eleições teve encontro com o próprio Bolsonaro e que, por determinação dele, se encontrou também com a cúpula das Forças Armadas.
As reuniões aconteceram no Palácio da Alvorada e no Ministério da Defesa e o objetivo era que desmoralizasse as urnas eletrônicas a fim de impedir que as eleições acontecessem.
O encontro de Delgatti com Bolsonaro foi articulado pela deputada Carla Zambelli (PL-SP) que, apavorada, horas antes do depoimento do hacker, internou-se num hospital “para tratar de diverticulite”. Já a senadora bolsonarista Damares Alves (Republicanos-DF) ameaçou Delgatti durante o depoimento na CPMI. Muito nervosa, dirigiu-se a ele dizendo que “a vida dá volta e é a tua vida que está em risco”, numa típica fala miliciana.
Se os depoimentos de Delgatti (dois na Polícia Federal e um na CPMI) foram uma bomba para Bolsonaro, seus dissabores nos últimos dias não pararam aí. A cúpula da Polícia Militar do Distrito Federal foi presa na última sexta-feira, por deixar de agir para impedir os atos golpistas de 8 de janeiro, devido ao alinhamento ideológico com Bolsonaro.
Também na sexta-feira, a revista Veja divulgou entrevista com o advogado Cezar Bitencourt, que representa o tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro. Nela, é dito que o militar entregou para Bolsonaro ou para a ex-primeira-dama Michelle, dinheiro referente à venda de um relógio Rolex, avaliado em cerca de R$ 253 mil. O relógio é uma das joias que Bolsonaro tentou se apropriar, uma vez que a legislação brasileira é clara sobre o assunto.
Mauro Cid está preso preventivamente em função das falsificações no cartão de vacina do ex-chefe e de sua filha. Desde então ele vinha se mantendo em silêncio, mas, de acordo com seu advogado, agora estaria disposto a falar. Um ajudante de ordens é simplesmente a memória do que fez aquele para qual prestava serviços. No caso de Cid, a proximidade com Bolsonaro era tamanha, que ele o tratava por “tio”.
Receber indevidamente parte do salário de funcionários (as “rachadinhas”), falsificar cartões de vacinação, negligência durante a pandemia, apropriação indébita de objetos que pertencem ao Estado brasileiro são algumas das acusações que Bolsonaro já enfrenta. Mas nenhuma delas está tão perto de levá-lo ao banco dos réus como as revelações de Delgatti. Seria difícil até para roteiristas de cinema imaginar crimes com tamanha magnitude.
Depois das revelações, Bolsonaro e sua turma ficaram sem voz, possivelmente perplexos com o que julgavam que nunca chegaria ao conhecimento público. Em seguida, o ex-presidente se fez de vítima e até chorou em encontro com apoiadores. Na sequência vieram os desmentidos de praxe e novas ameaças. Para provar o que disse, Delgatti deu detalhes minuciosos dos encontros e também dos locais onde foram realizados. Disse ainda que para convencê-lo de que poderia atuar sem riscos, Bolsonaro garantiu-lhe que se algum juiz o prendesse, ele prenderia o juiz, numa referência implícita ao ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moraes, responsável pelo processo das Fake News.
Possivelmente pressionado pelos bolsonaristas, o advogado de Mauro Cid tentou um recuo, acusando a revista Veja de ter distorcido suas declarações. Desde então, vem mudando a versão a cada nova entrevista, especialmente depois que Bolsonaro mandou uma espécie de recado cifrado para Mauro Cid. Ao definir o comportamento do ex-ajudante de ordens como “camicase”, parece ter embutido aí uma ameaça. Um camicase é aquele que para atingir o alvo também morre. A etapa seguinte nas investigações cabe à Polícia Federal, que deverá checar tudo o que foi denunciado por Delgatti. Uma vez comprovadas as acusações, o que não parece difícil, o caminho é colocar Bolsonaro e todos os militares e civis que participaram da tentativa de golpe em 8 de janeiro no banco dos réus.
No quesito julgamento e prisão de golpistas, o Brasil está atrasado quase três décadas. Ao contrário da vizinha Argentina, que julgou e condenou militares golpistas tão logo a ditadura (1976-1982) chegou ao fim, as nossas instituições nunca se dispuseram a enfrentar esse problema. A Lei da Anistia (lei 6.683) de 1979, proposta pelo general presidente João Batista Figueiredo, beneficiou igualmente quem cometeu atrocidades e quem foi vítima delas. Quando em 2010, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) propôs uma revisão desta lei, para que torturadores pudessem ser punidos, o STF rejeitou a ação ao dizer que a anistia valia para todos.
Foi a impunidade que levou remanescentes de 1964 a se lançarem em novas ações contra a democracia brasileira, como o golpe que derrubou a presidente Dilma Rousseff, em 2016, e a recente tentativa golpista em 8 de janeiro. Para quem não sabe, o general Augusto Heleno, ex-chefe do Gabinete de Segurança Institucional no governo Bolsonaro, é um dos militares “linha dura” que serviu como ajudante de ordens do general Silvio Frota quando ministro do Exército. Em 1977, Frota tentou derrubar o então general presidente Ernesto Geisel, por considerá-lo “afinado com os comunistas”. Geisel demitiu Frota, obrigou sua passagem para a reserva e deu início ao processo de abertura política no país. Os amigos e admiradores de Frota, no entanto, permaneceram nas Forças Armadas.
Mesmo com o retorno dos civis ao poder no Brasil, a impunidade dos militares é um dos mais graves problemas que a nossa democracia enfrenta. A instalação em 2011 da Comissão Nacional da Verdade, pela então presidente Dilma Rousseff, está entre as principais razões que levaram à sua derrubada. Mesmo tendo entre suas atribuições somente investigar violações aos direitos humanos acontecidos no período de 1946 a 1988, sem poder para levar ao banco dos réus quem quer que seja, setores militares se mostraram indignados. O golpe contra Dilma contou com a participação ativa desses militares, o que voltou a se repetir em 8 de janeiro.
A complicada presença dos fardados na história brasileira nunca foi devidamente enfrentada e isso faz com que se sintam autorizados a se intrometer na política. Haja vista que recentemente alguns deles queriam emplacar a distorcida leitura que fazem do artigo 142 da Constituição de 1988 para se tornarem uma espécie de Poder Moderador. Daí termos muito que aprender com a vizinha Argentina. Em 1985, Raul Alfonsín, um presidente fraco e semelhante ao brasileiro José Sarney, também o primeiro após a redemocratização em seu país, decidiu pelo julgamento de todos que cometeram crimes durante a última ditadura (1976-1982). Pressionado pela extrema-direita, que havia imposto leis absurdas como a do “Ponto Final” e da “Obediência Devida”, que livravam os militares de qualquer responsabilidade, Alfonsín não teve alternativa a não ser mostrar para a população o que havia acontecido. Pela primeira vez na história mundial após Nuremberg, um tribunal civil julgou e condenou os integrantes das juntas militares do período, com penas que variaram de quatro a 17 anos.
O último ditador-presidente argentino, Jorge Rafael Videla, foi condenado à prisão perpétua e morreu em 2015 na cadeia. A história desse julgamento está contada em detalhes no magnífico filme Argentina 1985. Dirigido por Santiago Mitre e tendo no papel do procurador-chefe, Julio Strassera, responsável pelas acusações, o consagrado ator Ricardo Darín, o filme é uma aula de história e a própria explicação das razões pelas quais na Argentina os militares não voltaram a se aventurar contra a democracia. Por mais que o país vizinho experimente gravíssimas crises econômicas, não se vê gente na rua pedindo a volta dos militares ao poder ou defendendo perseguição e mortes aos opositores.
O julgamento dos militares golpistas na Argentina envolveu 530 horas de audiências, nas quais foram ouvidas 850 testemunhas. Pela primeira vez, a população argentina pode conhecer, em detalhes, o que aconteceu com grande parte dos seus 30 mil mortos e desaparecidos. O julgamento durou várias semanas e, em algumas delas, o clima político beirou à temperatura máxima. No Brasil, as atrocidades cometidas pelos militares durante os chamados “anos de chumbo” nunca chegaram ao conhecimento da maioria da população.
A exceção de Dilma Rousseff, ela própria uma vítima dos anos de chumbo, todos os demais presidentes da Nova República, evitaram o assunto. O resultado é o que se conhece. Não por acaso, o filme de Santiago Mitre, mesmo lançado em 2022 e figurando entre os cinco indicados ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro de 2023, continua praticamente inédito no Brasil, disponível apenas em streaming. Mais do que um relato sobre fatos reais, Argentina 1985 serve de alerta para as nossas instituições e para a população brasileira. Os atos golpistas de Bolsonaro não são fatos isolados. Eles fazem parte de uma visão predominante em setores das Forças Armadas.
Bolsonaro, ele próprio, é um remanescente da ditadura militar. Ao contrário do que alguns possam imaginar, não foi ele que trouxe os militares novamente para a cena política. Foram os militares que se valeram dele para voltar a atuar diretamente na política. Há muito suas declarações, gestos e ações já deveriam ter sido coibidos. Como na Argentina, aqui também não será fácil colocar golpistas graúdos no banco dos réus. Mas esse processo não pode continuar sendo adiado.
Ao
comentar sobre a situação de Bolsonaro, o presidente da Câmara dos Deputados,
Artur Lira, um aliado do ex-presidente, veio com a conversa de que “o Brasil
precisa cuidar melhor de seus ex-presidentes”. Lira não explicou qual
tratamento seria esse, mas sabe-se que ele tem ventilado a possibilidade de
anistia para os atos cometidos por Bolsonaro. Lira, na legislatura passada, foi
aquele que barrou os mais de 100 pedidos de impeachment contra Bolsonaro. Os
setores organizados da população brasileira precisam ficar atentos e não
permitir que novamente tudo acabe em pizza. Se
Bolsonaro e os demais golpistas, militares e civis, não forem julgados e
receberem a devida sentença, dificilmente a democracia brasileira ficará livre
do fantasma fardado que a tem rondado. O Brasil
de 2023 precisa se tornar a Argentina de 1985.
Autora: Ângela Carrato é jornalista e professora do Departamento de Comunicação Social da UFMG. Publicado no Viomundo.
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