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1 de julho de 2022

Este artigo foi escrito com fome!

                                 Escritora Carolina Maria de Jesus - Foto reprodução.

Ainda no ano de 2021, uma amiga pediu para que eu escrevesse um artigo. A temática era livre e ela publicaria em seu jornal sobre política em quadrinhos. Decidi, então, escrever sobre a fome. O que não sabia, porém, é que eu também me encontrava entre os famintos.

Esse tema começou a chamar minha atenção ao observar o aumento vertiginoso de famintos no Brasil, principalmente, frente a terrível política econômica de Paulo Guedes, atual ministro da economia do governo Bolsonaro, e a péssima gestão da pandemia de covid 19 feita por Jair Messias Bolsonaro, eleito por 55% da população brasileira como seu presidente da república.

Hoje, já não é mais novidade o vergonhoso cenário da fome no Brasil. Somos mais de 33 milhões de brasileiras e brasileiros em situação de insegurança alimentar, segundo os dados do 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, pesquisa realizada pela Rede PENSSAN (Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional). Descobrimos, através destes dados, que 4 entre 10 famílias não possuem acesso a alimentação plena no Brasil. E, em famílias com crianças menores de 10 anos, a fome dobrou em comparação a 2020. A pesquisa ainda confirma o que já intuíamos: a fome no Brasil afeta mais as mulheres, os negros, populações do campo e da região norte e nordeste. No entanto, ainda em 2021, quando comecei a me debruçar sobre esse tema, reuni algumas referências sobre o assunto e, lendo a publicação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), referente a “Pesquisa de Orçamentos Familiares 2017 – 2018 – Análise da Segurança Alimentar no Brasil”, descobri que eu e minha família, apesar de sobreviventes do caos pandêmico bolsonarista, nos enquadrávamos numa categoria de fome denominada “insegurança alimentar moderada”. Não era sequer a leve, quando há preocupação ou incerteza quanto ao acesso de alimentos no futuro, onde a qualidade dos alimentos é inadequada, resultante de estratégias adotadas pelas famílias, visando o não comprometimento da quantidade de alimentos. Tampouco era a grave, quando há a redução quantitativa de alimentos entre as crianças da casa, ou seja, há uma ruptura nos padrões de alimentação resultante da falta de alimentos entre todos os moradores da residência, incluindo as crianças. Era, então, a moderada, o que significa dizer que houve a redução quantitativa de alimentos entre os adultos da família e uma ruptura nos padrões de alimentação resultante da falta de alimentos entre os adultos.

No momento em que fiz essa descoberta eu paralisei e não consegui mais escrever aquele artigo sobre a fome, porque eu, na realidade estava flertando com a fome mais de perto do que eu tinha consciência. Depois de lidar com esse problema durante algum tempo, embora ainda tenha certa dificuldade em falar desse assunto, concluí que a minha experiência pode contribuir de algum modo com esse debate e, por isso, te convido a pensar, através do olhar negro de uma mulher faminta, sobre a fome.

Mas não pense que isso é novidade, viu? Antes de mim, já escrevia sobre a fome, também em primeira pessoa, Carolina Maria de Jesus, por exemplo. E esse tipo de escrita é muito diferente daquela registrada em terceira pessoa. Quando se escreve sobre a fome estando em situação de fome, como fez Carolina, ou em situação de insegurança alimentar, como faço agora, a melhor contribuição que podemos dar à sociedade não são os dados estatísticos ou mesmo apontar os responsáveis por esse problema social. O que podemos oferecer de melhor é o registro da nossa própria experiência de fome, pois ela é um documento e um retrato dos dias nos quais vivemos: significa dar nome, sobrenome e rosto aos assombrosos números da fome, já que cada unidade desses números representam as vidas de pessoas reais. Nada disso é ficcional.

A fome no Brasil é tão generalizada, nos dias de hoje, que mesmo as famílias compostas por pessoas com alta escolaridade, como é a minha, também são afetadas. Começamos a reparar em como o perfil dos pedintes nas ruas das grandes capitais do país está diferente. Uma das coisas perceptíveis é que essas pessoas apresentam um vocabulário mais elaborado. Os camelôs de doces nos ônibus do Rio de Janeiro, por exemplo, que tinham um perfil predominantemente masculino, jovem, negro e com baixa escolaridade, agora também é feminino, mais maduro, universitário e composto não somente por pessoas negras, apesar de ainda serem a maioria. E essas pessoas não estão ali para custear seus gastos com fotocópia ou passagem, o que já não seria completamente adequado, mas estão ali para garantir um dia a mais de comida para si e para suas famílias. Isso que afirmo não é um palpite, pois os próprios camelôs falam isso em seus discursos de venda nos ônibus da cidade. Nas ruas, tanto das periferias cariocas quanto do centro da cidade, vemos pessoas vendendo seus pertences, muitas vezes, nem mesmo “a preço de banana” que, de tanta inflação, virou praticamente artigo de luxo nas casas dos brasileiros. As pessoas não estão vendendo seus bens para obterem uma renda extra, assim como os camelôs, o fazem para comprar comida. Se vê de tudo nessas feiras improvisadas: aparelhos celulares, luminárias de estudo, almofadas, artigos de decoração, móveis, eletrodomésticos, entre outros produtos.

Essas são as cenas do cotidiano urbano carioca que, apesar de serem menos eloquentes do que a famosa e infame “fila do osso”, demonstram como a fome está se espalhando tão rápido quanto o coronavírus e, tragicamente, enfraquecendo a saúde das pessoas, tornando-as ainda mais vulneráveis diante do que os especialistas já chamam de “a 4ª onda da covid 19 no Brasil”. Além disso, muitas famílias perderam mais do que seus entes queridos durante a pandemia, elas perderam também as pessoas responsáveis pela principal ou única fonte de renda familiar, ficando assim, devido ao brutal desmonte e enfraquecimento do Estado, sem terem o que comer e onde morar.

É bastante curiosa a situação das pessoas que estão no meio do espectro da fome no Brasil atualmente. Se por um lado é bom ainda ter de onde tirar comida, seja através de suas redes de apoio ou do próprio trabalho, por outro lado é uma realidade acachapante, brutal, conviver com a incerteza todos os dias – Terei o que comer amanhã? Minha família terá o que comer amanhã? Os dias vão se esvaindo como areia numa ampulheta. São dias suspensos, nos quais quase nada se desfruta. Até as refeições que se consegue fazer não possuem mais o mesmo sabor. Vemos nessa lista de afetados pela fome, além das pessoas de sempre, algumas pessoas completamente improváveis, como uma mulher chamada Inês Tânia Lima da Silva, uma web celebridade, a qual você provavelmente conhece como Inês Brasil. Ela relatou, durante entrevista ao podcast “Só 1 Minutinho”, que passou um período sem ter como comprar comida durante a pandemia e precisou contar com a ajuda de um vizinho. De Carolina de Jesus a Inês Brasil, quem diria, não é mesmo? A fome no Brasil atravessa gerações, mas conserva sua teimosia em sempre bater na porta das famílias negras e pobres. No entanto, devido às circunstâncias políticas do país estarem prestes a se entregarem a uma orgia fascista entre as elites financeiras, agrícolas e os poderes instituídos, se é que já não se entregaram, a linha da fome segue criando mais lastro e diversificando o perfil dos famintos, sobretudo frente ao cenário político internacional e o grave risco de desabastecimento global, no qual até você que está lendo este artigo pode ser afetado.

Uma das coisas que me fizeram perceber que eu estava vivendo um cenário de insegurança alimentar moderada foi o fato de que eu não tinha certeza, não somente, mas sobretudo no fim do mês, se conseguiria ter alimento suficiente no dia seguinte. Mas essa preocupação não nos levou a substituir marcas famosas por genéricas ou um gênero alimentar por outro, pois essa medida já havia sido tomada, devido à perda massiva de poder aquisitivo a qual fomos submetidos nos últimos anos. Porém, mais do que isso, estávamos esticando o horário das refeições importantes do dia para que essas pudessem substituir outras, por exemplo, a gente não tomava café da manhã, mas almoçava uma hora mais cedo. Ou fazia o lanche da tarde mais tarde e se recolhia mais cedo para dormir. Ou mesmo suprimíamos uma refeição, para que a criança da casa pudesse fazer aquela refeição por mais dias. A pipoca vira lanche de todas as tardes. O louro no feijão vira item obrigatório para que se conserve por mais dias, já que o gás de cozinha está caro e não podemos nos dar ao luxo de cozinhar feijão mais de uma vez na semana. Frutas, legumes e verduras são consumidos apenas no início do mês ou quando se deixa a conta de luz atrasar um pouco.

Como dizia Carolina de Jesus, “é preciso conhecer a fome para saber descrevê-la”. Nenhum número será capaz de dizer a diferença entre a tontura da fome e a tontura do álcool. Ou quais são as estratégias que pessoas em insegurança alimentar adotam para não sucumbirem totalmente à fome. O choque inicial que eu tive, ao descobrir que eu e minha família estávamos em situação de insegurança alimentar moderada, se deveu ao fato de que eu, mesmo passando por isso, não tinha consciência disso. Depois de pensar bem sobre o assunto, entendi o motivo.

É muito comum que famílias negras e/ou suburbanas colecionem diversas histórias de superação, resistência à fome e outros problemas sociais. Já ouvi histórias assim da minha avó e da minha mãe, coisas como: “no meu tempo fazíamos nossos brinquedos com tampinhas de refrigerante” ou “ninguém ganhava roupas novas, usávamos dos irmãos mais velhos” ou ainda “quando tinha feijão e farinha a gente comemorava”. Essas são memórias muito duras, mas que minha mãe e avó relembravam com muito orgulho, pois haviam superado esse tempo ruim, mesmo que, às vezes, estivessem frente a frente com essa realidade novamente. Muitos de nós crescemos em lares assim e, quando nos vemos nessas situações novamente, demoramos a identificar que isso pode ser um problema, pois já é algo naturalizado nesse país, passar fome e dificuldades é a regra. Não é de hoje que tentam nos exterminar, embora sejamos muito criativos e experientes em dar um jeito de resistir à barbárie. Como já cantava Zé Kéti: “se não tem água, eu furo um poço. Se não tem carne eu compro um osso e ponho na sopa e deixo andar”. Expor nossa realidade em outros tempos era algo feito e intermediado pelas elites. Hoje, nós mesmos, estamos nas colunas de opinião dos jornais, mas o que de fato mudou eu ainda me questiono, afinal, é o fim do mês e este artigo foi escrito com fome.

Autora: Kelly Tiburcio Cineasta e graduanda no curso de História, é produtora da série NarraPreta, na qual aborda temas relativos à produção audiovisual e ao cinema negro. Dirigiu os documentários Não Grita e Primeiramente, Marielle. Publicado no Site Congresso em Foco.

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