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1 de setembro de 2021

Carta aberta ao Ministro da Educação Milton Ribeiro!

Nossos filhos não “atrapalham” (as aspas são suas) a vida dos “outros” (as aspas são minhas) simplesmente porque não há uns e outros. Mas, o senhor pode estar certo de que estamos dispostos a atrapalhar (sem aspas) os seus planos de segregação e exclusão.

Foto: MEC

Sr. Ministro,

Dirijo-me ao senhor, não por sua pessoa, mas pela função pública que ocupa, função que o coloca, nesse momento histórico, como um nosso servidor, já que são os nossos impostos que pagam seu salário. Mais especificamente, dirijo-me ao senhor devido à sua declaração do dia 09/08/2021 em entrevista dada ao programa Novo Sem Censura da televisão pública TV Brasil. Naquela oportunidade, o senhor criticou o Plano Nacional de Educação Especial (PNEE) que garante a inclusão de crianças e adolescentes com deficiência nas escolas das redes pública e privada, e defendeu a criação de classes e escolas “especializadas” (as aspas são minhas) – que na prática segregam as crianças e adolescentes com deficiência. Afirmou, ainda, que alunos com deficiência “atrapalham” (as aspas são suas) o aprendizado das demais crianças.

Desconheço as qualificações específicas que o tornam apto a ocupar essa tão nobre e importante função em nosso país, mas pesquisei sua formação na Plataforma Lattes do CNPQ, que contém os dados de todos os pesquisadores do Brasil – e que, aliás esteve fora do ar durante vários dias – e tomei conhecimento de que, além de pastor protestante, teólogo e advogado o senhor possui doutorado em educação pela USP. Imagino que, em algum momento de sua formação o senhor tenha ouvido falar de Paulo Freire, educador brasileiro cujo centenário comemoramos em 2021. Considerado um dos mais importantes pensadores da pedagogia mundial, ele sustenta que a educação é um processo ativo e transformador para toda a sociedade. Talvez o senhor também conheça outro grande pensador, o russo Vigotski, cujo trabalho demonstra que não há desenvolvimento sem mediações e interações sociais. O que me parece mais duvidoso é que o senhor tenha convivido com pessoas com deficiência ao longo se seu percurso escolar e universitário já que como o senhor também afirmou na mesma entrevista, “no passado, não se falava em atenção ao deficiente”.

Sim, o senhor tem razão quanto a essa constatação histórica. De fato, as pessoas com deficiência já foram consideradas como fruto de possessão demoníaca, já vagaram pelas estradas medievais sem qualquer amparo, já foram confinadas em asilos e tratadas de modo desumanizado. Vítimas de eugenia, já foram consideradas doentes, já foram esterilizadas compulsoriamente e, inclusive, em um dos momentos mais tenebrosos da história recente da humanidade, muitas foram exterminadas em campos de concentração, provando que racismo e capacitismo sempre caminham de mãos dadas. Mais recentemente passaram a ser consideradas “educáveis” (as aspas são minhas) até avançarmos, a partir dos anos noventa, para o paradigma da inclusão, que o senhor chama de “inclusivismo” (as aspas são minhas). O paradigma da inclusão ainda está longe da concepção de educação que almejamos – uma educação universal que lide com as diferenças, ultrapassando o par inclusão/exclusão –, mas já é um enorme avanço. Avanço, aliás, conquistado graças à luta de gerações de educadores, familiares e pessoas com deficiência. Avanço que se deu em nível global no mundo ocidental, e do qual o Brasil acompanhou ao assinar a Convenção Internacional de Direitos das Pessoas com Deficiência, desenvolver a PNEE e a Lei Brasileira de Inclusão, ambos atacados pelo senhor.

Ainda levando em conta seu percurso e formação, concluo que suas palavras e posições não se devem a um possível desconhecimento desse avanço histórico, dos processos de luta que o promoveram e do retrocesso que o retorno à educação especial segregatória produziria. Ao contrário, o que me parece é que seu discurso revela uma orientação política bastante clara. Aliás, não é mera coincidência que na mesma entrevista o senhor tenha afirmado que universidade não deveria ser para todos. Seu discurso faz lembrar ideias retrógradas, que classificam os seres humanos em raças superiores e inferiores, graus maiores ou menores, supondo a existência de uma “elite” (as aspas são minhas) que teria acesso a privilégios e os demais que deveriam se conformar com menos. Sabemos o nome de tal ideologia, aliás macabramente imitada por seu antecessor no ministério.

Mas o que fica certamente explícito, senhor Ministro, é seu capacitismo, o qual foi reafirmado em várias passagens de sua entrevista, enfatizando sua crença em uma separação essencialista entre “nós” e “eles” (as aspas são minhas). O senhor reforça, desta forma, a ideia equivocada e ultrapassada de que existiria “A” deficiência em si mesma, independente dos aspectos sociais, históricos, culturais e subjetivos que determinam condições de possibilidade para o desenvolvimento das potencialidades e anseios que todos os seres humanos possuem. Condições materiais e imateriais de acessibilidade, mediação, capacitação, metodologia, tecnologia, etc. Condições essas que o senhor, enquanto ministro da educação teria como obrigação trabalhar para garantir em todas as escolas e para todas as crianças e adolescentes, bem como para os educadores para que pudessem exercer sua profissão de maneira digna.

Mas, mais além dos aspectos ideológicos, sabemos que sua política é igualmente movida por razões econômicas. O Decreto 10.502 publicado em 01/10/2020 pelo presidente Jair Bolsonaro – felizmente suspenso pelo STF – significa, na prática, um desvio de recursos do MEC para “instituições especializadas”, respondendo a uma antiga reivindicação de grupos econômicos que atualmente sustentam esse governo. Antes, já havia ocorrido a desativação da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (Secadi).

De fato, suas palavras não deveriam nos surpreender, já que o senhor participa de um governo que defende explicitamente, e sem o menor pudor, a violência, o ódio, a mentira, a negação da ciência e da cultura e a concentração de privilégios. Mas saiba, senhor Ministro, que ainda assim elas magoam e calam fundo em nossos corações. Nós que passamos a vida lutando contra o capacitismo que impõe a invisibilidade, o apagamento e na pior das hipóteses o extermínio de nossos filhos não vamos nos calar diante de sua retórica preconceituosa. Nossos filhos não “atrapalham” (as aspas são suas) a vida dos “outros” (as aspas são minhas) simplesmente porque não há uns e outros. Mas, o senhor pode estar certo de que estamos dispostos a atrapalhar (sem aspas) os seus planos de segregação e exclusão.

Ana Laura Prates (Dona de casa, mãe, psicanalista, editora e escritora)

Autor: Ana Laura Prates – Possui graduação em Psicologia pela Universidade de São Paulo (1989), mestrado em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo (1996), doutorado em Psicologia Clínica pela Universidade de São Paulo (2006) e Pós-doutorado em Psicanálise pela UERJ (2012).

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