A covid-19 obrigou a que esta despedida
ocorra sob máscaras, à distância. Mas há séculos o que não muda é nossa
necessidade de encontrar sentido num cenário despido de lógica. O luto,
portanto, como um grito de mobilização e insurreição de consciências.
Artigo - Em Belo Horizonte, manifestante leva uma cruz em protesto pelas mortes pela covid-19 no Brasil. Washington Alves - Reuters
A covid-19 obrigou a que o
ritual humano do luto pelos que se foram ocorra coberto por
máscaras, à distância, sem um último beijo. Num recente evento em Madri,
uma enfermeira arrancou lágrimas ao resumiu esse novo adeus. “Temos sido
mensageiros do último adeus para os idosos que estavam morrendo sozinhos,
ouvindo a voz de seus filhos através do telefone. Fizemos videochamadas,
apertamos as mãos e tivemos que engolir nossas lágrimas quando alguém nos disse:
“Não me deixe morrer sozinho. Vivemos situações que ferem a alma”, disse a
enfermeira.
Ao longo dos séculos, o que não mudou
foi nossa necessidade de encontrar sentido num cenário despido de
lógica, acima de tudo por aqueles que diretamente perderam pessoas amadas.
Uma necessidade de homenagear aqueles que nos deixaram, ainda que passaremos
anos sonhando em silêncio com eles. O luto faz parte de diferentes culturas e
de diferentes religiões, se confundindo com a própria história da humanidade. A
perda é uma temática estudada e especialistas nos ensinam como ela nos afeta de
forma psicológica e física. Nos tira o sono e muda nossa maneira de encarar o
restante de nossas vidas. Ao longo dos séculos, as práticas mudaram. Na Idade
Média, rituais relativos à morte eram públicos. O luto era de uma comunidade.
Em outros locais, a morte era seguida por eventos festivos que a desafiava com
uma explícita demonstração do poder da vida.
Foi com a Primeira Guerra Mundial,
por exemplo, e o fato de muitos dos garotos enviados ao front nunca terem
voltado, que monumentos com nomes desses heróis se espalharam por praticamente
todas as cidades da Europa. Nesses monumentos, até hoje, pequenos vilarejos se
encontram uma vez por ano para deixar claro que existe uma comunidade de
destino.
Hoje, a alma ferida de uma nação fica
evidente ao atingirmos um trauma de massa. Mas, no caso brasileiro, temos
sérios obstáculos para conseguir transformar essa tragédia em uma reação
coletiva, em uma mobilização popular. Em parte, trata-se de o resultado de anos
de um processo de banalização da morte, ao ponto de contar com um chefe de
Estado cujo símbolo de campanha era uma arma.
Hoje, o Brasil precisa ter a coragem de
declarar seu luto coletivo e assumir que a morte do outro é, em parte, uma
perda de todos. Uma tarefa difícil quando, nos discursos improvisados dos
almoços de domingo, sobra ódio contra o outro. Uma tarefa complicada quando
parte da sociedade ainda acredita que uma parcela do país não tem direito a ter
direitos. Ou quando, de forma hipócrita, o governo faz discursos de combate ao
racismo na ONU ao lembrar da morte de George Floyd. Mas não destina uma só
palavra para lamentar a perda de seus velhos caciques na floresta.
Ao atingirmos 100.000 perdas de vidas, é
o tempo de suspender tudo, recolocar nossas prioridades sobre a mesa e avaliar
que sociedade queremos reerguer. Não há como seguir fingindo uma falsa
normalidade. Se não agora, quando? O que precisaremos para despertar se nem 100
mil mortes nos transformam como nação? O que precisaremos para nos transformar
em nação?
Recuperar a ideia de um luto coletivo é
o primeiro passo para dizer que não aceitaremos a fatalidade da crise. O luto
por aqueles que não resistiram às falências do Estado. Um luto por caminhos não
tomados. Um luto por escolhas equivocadas. Um luto pela politização de uma
pandemia, talvez a grande história que nossos descendentes contarão no futuro
sobre nós.
Não são 100.000 mortes. São 100.000
pessoas. Não se trata de um destino inevitável. Mas das consequências de
ações e opções políticas. O luto, portanto, como ato de resistência. Um grito
de mobilização. O luto, enfim, como insurreição de consciências. Essa, sim, uma
homenagem real àqueles que morreram e uma chama de esperança para que os
permaneceram.
Autor: Jamil Chade – El
País.
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