'A
Máquina do Ódio', de Patrícia Campos Mello, mostra como o presidente segue o
manual de Viktor Orbán para silenciar a mídia. Leia um trecho do livro da
Companhia das Letras.
Jair Bolsonaro e o ultradireitista húngaro Viktor Orban. Marcos Correa - AFP
“Vocês são uma espécie em extinção. Eu
acho que vou botar os jornalistas do Brasil vinculados ao Ibama. Vocês são uma
raça em extinção.”
A frase de Jair Bolsonaro ainda
pertence à categoria wishful thinking, mas seu governo está empenhado em
transformá-la em realidade. De forma geral, políticos encaram a mídia como
inimiga. Não entendem por que a imprensa precisa investigar, criticar e
fiscalizar os governos. O presidente vai além. Ele quer convencer as pessoas de
que quem lê jornais fica “desinformado”, e de que elas deveriam consumir
informação diretamente das redes sociais dele e de seus apoiadores, sem
filtros.
Outro dia, num raro acesso de bom humor
com a imprensa, Bolsonaro aceitou receber repórteres no Alvorada para “chupar
uma manga”. Quando os jornalistas se preparavam para entrar no palácio, um
apoiador se dirigiu a eles e disse: “Espero que vocês parem de fazer um
jornalismo canalha. Espero que tenha manga com veneno para vocês”.
Bolsonaro segue à risca o manual húngaro
“Como acabar com a imprensa independente em dez lições”, obra de seu colega
populista de direita, o primeiro-ministro Viktor Orbán. Na Hungria, em
poucos anos a mídia crítica foi dizimada. Tal como Bolsonaro, Orbán se queixava
de que a mídia tradicional era injusta ao atacá-lo e tachava a imprensa
independente de “fake news”. Ele então resolveu o “problema”: empresários
ligados ao governo e a seu partido, o Fidesz, compraram a maior parte dos
veículos de mídia independente, que hoje se dedicam a propagar as ideias caras
a Orbán, como demonizar imigrantes e criticar o megainvestidor e
filantropo George Soros.
Por mídia independente, entenda-se
jornais, televisões, sites noticiosos ou rádios que não deixam de investigar um
político só porque ele está no governo, não se curvam a pressões para veicular
apenas notícias positivas que se encaixam na narrativa desejada pelo governante
da vez, nem se transformam em porta-voz de determinado grupo.
A primeira lição do manual de combate à
imprensa é sufocar a mídia em termos econômicos. Os jornais já vivem um
contexto financeiro difícil no mundo. Há anos passam por uma crise em seu
modelo de negócios. Poucos veículos conseguem ter lucro, mesmo com a combinação
de assinaturas e anúncios on-line (que são fagocitados, na maioria, pelas
grandes plataformas de tecnologia). Como disse o sociólogo Demétrio Magnoli,
“os jornais converteram-se em anões na terra dos gigantes da internet”.
Nos Estados Unidos, entre 2013 e 2018, a
receita publicitária dos jornais caiu de 23,6 bilhões de dólares para 14,3
bilhões de dólares. Em 2018, o Google, sozinho, teve 116 bilhões de dólares de
faturamento publicitário, e o Facebook faturou 55 bilhões de dólares. Juntos,
Google, Facebook e Amazon abocanham quase 70% do toda a receita
publicitária on-line.
No Brasil, números sobre a divisão
do bolo publicitário ainda não cobrem de forma abrangente o alcance dos
anúncios na internet. Mas o levantamento do Cenp-Meios mostra que a
participação dos veículos tradicionais de mídia vem caindo. A TV ainda abocanha
a maior parte da verba publicitária — 53% a TV aberta e 7% a TV por assinatura
em 2019, de janeiro a setembro. Mas a fatia encolheu: em 2017, chegava a 58,7%
e 8,5%, respectivamente. Nesse ano, os jornais absorviam 3,3% do gasto em
publicidade; as revistas ficavam com 2,1%; o rádio, com 4,6%, e a internet era
destino de 14,8%. Em 2019, de janeiro a setembro, o gasto publicitário na
internet subiu para 20,7%, o dos jornais caiu para 2,7%; revistas para 1%, e
rádio se manteve estável, com 4,6%.
A queda da circulação dos grandes
jornais é outra amostra da situação difícil em que se encontra a mídia
tradicional. O número total de exemplares (digitais e impressos) de nove
grandes jornais brasileiros — Folha de S.Paulo, O Globo, Estado de S. Paulo,
Super-Notícia, Zero Hora, Valor Econômico, Correio Braziliense, Estado de Minas
e A Tarde — em dezembro de 2014 era de 1712424; em dezembro de 2019, a cifra
era 1476303 — queda de 236121 (13,8%).
Acrescente-se a essa fragilidade
estrutural um governo aprovando legislação que ameaça a liberdade de
imprensa e a viabilidade financeira dos veículos, e está criada a
tempestade perfeita. Que já desabou na Hungria e está fustigando o Brasil.
Na Hungria, Orbán baixou uma série de
leis que previam multas para veículos de mídia que fizessem “cobertura
desequilibrada”, “insultuosa” ou em violação à “moralidade pública”. A
legislação obriga a mídia a fazer cobertura “confiável, rápida e precisa” das
notícias — do ponto de vista do governo, claro. Além disso, o húngaro recorre a
um instrumento básico de intimidação: corte de anúncios do governo em mídia não
alinhada ao partido no poder.
No Brasil, Bolsonaro ameaçou cortar
publicidade na mídia “inimiga” e cumpriu a promessa já no primeiro
ano de governo. Relatório do Tribunal de Contas da União (TCU) revelou que o
governo passou a destinar os maiores percentuais de verba publicitária para a
tv Record e o SBT — emissoras consideradas aliadas ao Planalto, mas que não são
líderes de audiência.
Embora detentora do maior ibope do
país, a Globo passou a ter participação bem menor no bolo. De acordo com
reportagem da Folha, em 2017 a Globo ficou com 48,5% dos recursos do governo e,
em 2018, 39,1%. Em 2019, com base em dados parciais, a fatia despencou para
16,3%. Os percentuais da Record foram de 26,6% em 2017, 31,1% em 2018 e, agora,
42,6%; os do sbt, 24,8%, 29,6% e 41%, respectivamente. Nos meios impressos
críticos, anúncios do governo brasileiro e de estatais secaram.
Também foram adotadas na Hungria várias
medidas que dificultam a aplicação de leis de acesso à informação, instrumento
essencial para assegurar a transparência dos atos do governo e sua
responsabilização. Isso quase ocorreu no Brasil, mas o Congresso brecou no
início de 2019. Em 2020 Bolsonaro tentou de novo com uma medida provisória, com
a desculpa de ser necessária em decorrência da epidemia do coronavírus — e foi
suspensa por um dos juízes do Supremo Tribunal Federal.
Bolsonaro baixou medidas tendo em vista
se vingar da imprensa que julga “injusta”. Em agosto de 2019, assinou uma
medida provisória que acabava com a obrigação das empresas de capital aberto de
publicar seus balanços em jornais de grande circulação; a partir de então, elas
poderiam publicá-los sem ônus no site da Comissão de Valores Mobiliários, CVM.
A publicação de balanços é fonte
importante de receita para vários veículos. Essa mudança já estava prevista, e
é natural, uma vez que a migração para o on-line é tendência inexorável. Ela
seria implementada de maneira mais gradual, porém. De acordo com a legislação
aprovada pelo Congresso e sancionada pelo próprio presidente em abril, a
publicação dos balanços em jornais de grande circulação ainda seria exigida até
31 de dezembro de 2021. Medidas provisórias têm efeito imediato após serem
publicadas e precisam ser aprovadas em até 120 dias pelo Congresso para não
perderem a validade. De propósito o Congresso perdeu o prazo de votar essa MP
da desobrigação de publicar os balanços impressos e ela caducou em dezembro de
2019.
O presidente brasileiro não deixou
dúvidas sobre sua motivação para a medida provisória: “No dia de ontem eu
retribuí parte daquilo que a grande mídia me atacou. Assinei uma medida
provisória fazendo com que os empresários que gastavam milhões de reais ao
publicar obrigatoriamente por força de lei seus balancetes agora podem fazê-lo
no Diário Oficial da União a custo zero”, disse na época.
Ameaçou o Valor Econômico em especial,
dizendo “espero que sobreviva à MP de ontem”, e criticou supostas entrevistas
que o jornal teria feito com ele, com declarações cheias de imprecisões. E,
logo depois, em meio à polêmica mundial sobre suas políticas
antiambientais, afirmou: “Nós estamos ajudando a não desmatar e estamos
facilitando a vida dos empresários”. Segundo informou o Valor, o papel
utilizado pela imprensa é produzido no Brasil e provém de reflorestamento, ou
seja, não causa desmatamento. Por sua vez, o presidente da Câmara, Rodrigo
Maia, ponderou que “retirar receitas dos jornais do dia para a noite” não era
uma boa ideia.
Em setembro de 2019, Bolsonaro voltou à
carga e editou uma medida provisória que dispensava a publicação de editais de
licitação, concursos e tomadas de preços em jornais diários de grande
circulação. Pela proposta, esses comunicados deveriam ser publicados apenas na
imprensa oficial. O texto foi suspenso por liminar do ministro Gilmar Mendes,
do STF, em outubro.
O Congresso e o Supremo Tribunal Federal
têm cumprido seu papel de agir como freios e contrapesos, barrando as
medidas presidenciais mais autoritárias contra a imprensa. Mas isso não
significa que Bolsonaro tenha sido neutralizado. O presidente e seu secretário
de Comunicação, Fabio Wajngarten, passaram a pressionar anunciantes privados
para não fecharem contratos de publicidades com alguns jornais e TVs. “Parte da
mídia ecoa fake news, ecoa manchetes escandalosas, perdeu o respeito, a
credibilidade [e] a ética jornalística. Que os anunciantes que fazem a mídia
técnica tenham consciência de analisar cada um dos veículos de comunicação para
não se associarem a eles preservando suas marcas”, disse Wajngarten, que, à
frente da Secretaria de Comunicação, controla as verbas de propaganda do
governo.
Já Bolsonaro, após a Folha ter publicado
uma reportagem investigativa não favorável a ele, incitou anunciantes e
leitores a boicotarem o jornal. “Eu não quero ler a Folha mais. E ponto-final.
E nenhum ministro meu. Recomendo a todo Brasil aqui que não compre o jornal
Folha de S.Paulo. Até eles aprenderem que tem uma passagem bíblica, a João 8:32
[E conhecerão a verdade, e a verdade os libertará]. A imprensa tem a obrigação
de publicar a verdade. Só isso. E os anunciantes que anunciam na Folha também”,
afirmou. “Qualquer anúncio que faz na Folha de S.Paulo eu não compro aquele
produto e ponto final. Eu quero imprensa livre, independente, mas, acima de
tudo, que fale a verdade. Estou pedindo muito?”
Autora:
Patricia Campos Mello é jornalista da ‘Folha de S.Paulo’ e lançou às
vésperas da eleição presidencial de 2018 uma série de reportagens sobre
financiamento de disparos em massa de notícias falsas em redes sociais. Desde
então tornou-se alvo de milícias digitais estimuladas pelo chamado Gabinete do
Ódio, instalado no Palácio do Planalto. ‘A Máquina do Ódio', da editora
Companhia das Letras, é o seu segundo livro.
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