Foi dado, então, um pontapé inicial, e
fundamental, para a disciplina que chamaríamos, anos mais tarde, e com grande
naturalidade, de “História do Brasil”, como se as narrativas nela contidas
houvessem nascido prontas ou sido resultado de um ato exclusivo de vontade ou
do assim chamado destino. Sabemos, porém, que na imensa maioria das vezes
ocorre justamente o oposto: momentos inaugurais procuram destacar uma dada
narrativa temporal em detrimento de outras, criar uma verdadeira batalha
retórica — inventando rituais de memória e qualificando seus próprios modelos
de autênticos (e os demais de falsos) —, elevar alguns eventos e obliterar
outros, endossar certas interpretações e desautorizar o resto. Episódios como esse
são, portanto, bons para iluminar os artifícios políticos da cena e seus
bastidores. Ou seja, ajudam a entender como, quando e por que, em determinados
momentos, a história vira objeto de disputa política.
No caso, a intenção do concurso era
criar apenas uma história, e que fosse (por suposto) europeia em seu argumento,
imperial na justificativa e centralizada em torno dos eventos que ocorreram no
Rio de Janeiro. Desbancando Salvador, o Rio se tornara capital do Brasil desde
1763, e agora precisava exercer sua centralidade política e histórica. Além do
mais, o estabelecimento necessitava confirmar sua origem palaciana, bem como
justificar a composição do quadro de sócios, basicamente pertencentes às elites
agrárias locais.
Dessa maneira, nada mais adequado que a
construção de uma história oficial que concretizasse o que, àquela altura,
parecia artificial e, além do mais, recente; um Estado independente nas Américas,
mas cujo projeto conservador levou à formação de um Império (regido por um
monarca português) e não de uma República. Ademais, era preciso enaltecer um
processo de emancipação que ia gerando muita desconfiança e conferir-lhe
legitimidade. Afinal, diferentemente de seus vizinhos latino-americanos, o
chefe de Estado no Brasil era um monarca, descendente direto de três casas
reais europeias das mais tradicionais: os Bragança, os Bourbon e os Habsburgo.
Mas a singularidade da competição também ficou associada a seu resultado e à
divulgação do nome do vencedor.
O primeiro lugar, nessa disputa histórica,
foi para um estrangeiro — o conhecido naturalista bávaro Karl von Martius
(1794-1868), cientista de iliba da importância que, no entanto, era novato no
que dizia respeito à história em geral e àquela do Brasil em particular —, o
qual advogou a tese de que o país se definia por sua mistura, sem igual, de
gentes e povos. Escrevia ele: “Devia ser um ponto capital para o historiador
reflexivo mostrar como no desenvolvimento sucessivo do Brasil se acham
estabelecidas as condições para o aperfeiçoamento das três raças humanas, que
nesse país são colocadas uma ao lado da outra, de uma maneira desconhecida na
história antiga, e que devem servir-se mutuamente de meio e fim”. Utilizando a
metáfora de um caudaloso rio, correspondente à herança portuguesa que acabaria
por “limpar” e “absorver os pequenos confluentes das raças índia e etiópica”,
representava o país a partir da singularidade e dimensão da mestiçagem de povos
por aqui existentes.
A essa altura, porém, e depois de tantos
séculos de vigência de um sistema violento como o escravocrata — que
pressupunha a propriedade de uma pessoa por outra e criava uma forte hierarquia
entre brancos que detinham o mando e negros que deveriam obedecer mas não raro
se revoltavam —, era no mínimo complicado simplesmente exaltar a harmonia. Além
do mais, indígenas continuavam sendo dizimados no litoral e no interior do
país, suas terras seguiam sendo invadidas e suas culturas,
desrespeitadas.
Nem por isso o Império abriu mão de
selecionar um projeto que fazia as pazes com o passado e com o presente do
Brasil, e que, em lugar de introduzir dados históricos, que mostrariam a
crueldade do cotidiano vigente no país, apresentou uma nação cuja “felicidade”
era medida pela capacidade de vincular diversas nações e culturas, acomodando-as
de forma unívoca. Um texto, enfim, que apelava para a “natureza” edênica e
tropical do Brasil, essa sim acima de qualquer suspeita ou contestação.
Martius, que em 1832 havia publicado um
ensaio chamado “O estado do direito entre os autóctones no Brasil”, condenando
os indígenas ao desaparecimento, agora optava por definir o país por meio da
redentora metáfora fluvial. Três longos rios resumiriam a nação: um grande e
caudaloso, formado pelas populações brancas; outro um pouco menor, nutrido
pelos indígenas; e ainda outro, mais diminuto, alimentado pelos negros. Na
ânsia de escrever seu projeto, o naturalista parece não ter tido tempo (ou
interesse), porém, de se informar, de maneira equânime, sobre a história dos
três povos que originavam a jovem nação autônoma. O item que tratava do “rio
branco” era o mais completo, alvissareiro e volumoso. Os demais pareciam quase
figurativos, demonstrando visível falta de conhecimento. “Falta” esta que na
verdade era “excesso”, pois dava conta do que interessava para valer:
contar uma história pátria — a europeia — e mostrar como ela se
imporia, “naturalmente” e sem conflitos, às demais.
Ali estavam, pois, os três povos
formadores do Brasil; todos juntos, mas (também) diferentes e separados.
Mistura não era (e nunca foi) sinônimo de igualdade. Aliás, por meio dela
confirmava-se uma hierarquia “inquestionável” e que, nesse exemplo, e conforme
revelava o artigo, apoiava-se num passado imemorial e perdido no tempo. Essa
era, ainda, uma ótima maneira de “inventar” uma história não só particular (uma
monarquia tropical e mestiçada) como também muito otimista: a água que corria
representava o futuro desse país constituído por um grande rio caudaloso no
qual desaguavam os demais pequenos afluentes.
É possível dizer que começava a ganhar
força então a ladainha das três raças formadoras da nação, que continuaria
encontrando ampla ressonância no Brasil, pelo tempo afora. Vários autores
repetiriam, com pequenas variações, o mesmo argumento. Sílvio Romero em Introdução
à história da literatura brasileira (1882), Oliveira Viana em Raça e
assimilação (1932), Artur Ramos em Os horizontes místicos do negro da
Bahia (1932). De forma, dessa vez, irônica e crítica, mas mostrando a
regularidade da narrativa, o modernista Mário de Andrade em Macunaíma (1928)
retoma a fórmula na conhecida passagem alegórica em que o herói e seus dois
irmãos resolvem se banhar na água encantada que se acumulara na pegada do
“pezão do Sumé”, e saem dela cada qual com uma cor: um branco, um negro e outro
da “cor do bronze novo”.
Foi sobretudo Gilberto Freyre quem
tratou, ele sim, de consolidar e difundir esse tipo de interpretação, não só em
seu clássico Casa-grande & senzala (1933) como, anos depois, em
livros sobre o luso tropicalismo, caso de O mundo que o português criou (1940).
Assim, se foi o antropólogo Artur Ramos (1903-49) quem cunhou o termo
“democracia racial” e o endereçou ao Brasil, coube a Freyre o papel de grande
divulgador da expressão, até mesmo para além de nossas fronteiras.
A tese de Freyre teve tal ressonância
internacional que acabou batendo nas portas da Unesco. No final dos anos 1940,
a instituição ainda andava sob o impacto da abertura dos campos de concentração
nazistas, que levaram à descoberta das práticas de genocídio e da violência
estatal, bem como alertaram sobre as consequências do racismo durante a Segunda
Guerra Mundial. Também tinha ciência da situação do apartheid na África do Sul
e da política de ódios que se formava no contexto da Guerra Fria. Animada,
então, pelas teses do antropólogo de Recife, e tendo a certeza de que o Brasil
representava um exemplo de harmonia racial para o mundo, a organização
financiou, na década de 1950, uma grande pesquisa com a intenção de comprovar a
inexistência de discriminação racial e étnica no país. Porém, o resultado foi,
no mínimo, paradoxal. Enquanto as investigações realizadas pelos
norte-americanos Donald Pierson (1900-1995) e Charles Wagley (1913-1991), na
Região Nordeste, buscavam corroborar os pressupostos de Freyre, já o grupo de
São Paulo, liderado por Florestan Fernandes (1920-1995), concluía exatamente o
oposto. Para o sociólogo paulista, o maior legado do sistema escravocrata, aqui
vigente por mais de três séculos, não seria uma mestiçagem a unificar a nação,
mas antes a consolidação de uma profunda e entranhada desigualdade
social.
Nas palavras de Florestan Fernandes, o
brasileiro teria “uma espécie de preconceito reativo: o preconceito contra o
preconceito”, uma vez que preferia negar a reconhecer e atuar. Foi também
Fernandes quem chamou a já velhusca história das três raças de “mito da
democracia racial”, revalidando, ao mesmo tempo, a força de tal narrativa e as
falácias de sua formulação. O golpe de misericórdia foi dado pelo ativismo
negro, que, a partir do fim da década de 1970, mostrou a perversão desse tipo
de discurso oficial, o qual tinha a potencialidade de driblar a força dos
movimentos sociais que lutavam por real igualdade e inclusão. Mas, apesar dos
esforços, mais de um século depois a imagem da mistura das águas continuava a
ter impacto no Brasil e soava como realidade!
Autora: Historiadora Lilia Schwarcz – Fronteiras do
Pensamento
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