Conhecemos muito bem o perigo contido na
linguagem, que nunca é inocente, porque também revela o abismo do nosso
interior.
Protesto por recursos para a educação e contra Bolsonaro em São Paulo, nesta terça-feira. AMANDA PEROBELLI REUTERS
Existe o perigo de considerar as
explosões verbais do presidente Jair Bolsonaro, sejam as escatológicas e
de mau gosto sexual ou as mais ideológicas, como um tanto caricaturais e
inofensivas. Não basta alegar que o presidente é "politicamente
incorreto" à la Trump ou que isso é apenas algo natural e
espontâneo nele. Pode acabar sendo mais grave e perigoso. Desde o surgimento da
psicanálise, e depois de Freud e Lacan, conhecemos muito bem o perigo contido
na linguagem, que nunca é inocente, porque também revela o abismo do nosso
interior.
O Brasil está começando a sofrer o
perigo da linguagem com a chegada ao poder do capitão reformado ultradireitista
Bolsonaro. Nada seria pior do que tomar suas bravatas e loucuras linguísticas
como algo sem importância a que deveríamos nos acostumar. Pode ser trágico.
Aonde a linguagem pode levar, às vezes
abertamente suja e outras vezes escondida na ambiguidade, é algo que a
Humanidade já experimentou ao longo da história com os maiores ditadores, e que
sempre acabou em tragédia. Quando, dias atrás, um jornalista lhe perguntou
sobre como ajudar a melhorar o meio ambiente — uma questão que o presidente
despreza, chegando a negar a evidências de sua gravidade —, Bolsonaro respondeu
que “é só você deixar de comer menos [sic] um pouquinho. Quando se fala em
poluição ambiental, é só você fazer cocô dia sim, dia não, que melhora bastante
a nossa vida também, tá certo?”
Houve quem achasse graça. Esquecemos que
algo assim aconteceu, por exemplo, com Mussolini, na Itália. Quando
iniciou sua revolução fascista, ele se divertia revelando alguns de seus gostos
sexuais, como o de que preferia fazer amor "com camponesas sujas e
peludas". Sabemos hoje como acabaram aqueles gostos escatológicos do Duce.
O perigo da linguagem de Bolsonaro
reside não apenas no que alguns chamam de vazio intelectual, de pequenez de
visão ou de falta de leitura. Pode se tornar algo mais sério, já que pode ser a
idiossincrasia da personagem. Não é que tente parecer engraçado e espontâneo.
Sua personalidade começa a ser vista como pequena de horizontes e com
convicções autoritárias que, hoje vemos, eram típicas dos grandes ditadores, e
que em muitas ocasiões foram o resultado de um complexo de inferioridade que os
levou a superar com os excessos ditatoriais que conhecemos. Assim, por exemplo,
com Mussolini, com Hitler ou com o Caudilho Franco, que sofria como
soldado de pequena estatura e voz esganiçada e feminina.
Em Bolsonaro, talvez mais do que suas
gracinhas escatológicas e fálicas, o que pode acabar sendo ainda grave são suas
ideias autoritárias que parece querer impor a um país como o Brasil, que vive
em democracia, com uma Constituição laica e moderna e com liberdade de credo e
expressão. Um exemplo do perigo da linguagem bolsonarista, mesmo quando pode
parecer inocente, mas que acaba colocando muros à verdadeira liberdade, foram
suas palavras, na semana passada, durante a Marcha para Jesus, em Brasília.
O presidente disse que os brasileiros
estão cansados de ouvir da "esquerdalha nojenta" defender que o
"Estado é laico". E acrescentou: “Mas eu, Jonnie Bravo, sou cristão…
respeitamos todas as religiões e quem não é cristão. Mas a maioria dos brasileiros
é cristão e ponto final. O Brasil é um só povo, uma só raça e um só coração. É
uma bandeira e meia: Brasil e Israel”.
À primeira vista, podem parecer palavras
sem especial periculosidade, até mesmo de elogio ao Brasil. Não eram. Havia
nessas palavras um ódio profundo à liberdade política. Não há motivo para a
esquerda ser "repugnante" só porque ele não gosta dela. É uma opção
tão legítima quanto a liberal ou a de direita. Quando ele e os seus
"respeitam todas as religiões, e quem não é cristão", e acrescenta,
incomodado: "e ponto final", está revelando uma espécie de concessão
aos não-cristãos. Equivale a dizer que serão simplesmente suportados. E quando
acrescenta que o Brasil é um só povo, uma só raça e um único coração, pode até
parecer uma frase bonita. Não é. Tem entranhado o seu desejo, como o de todos
os políticos autoritários, de querer plasmar o país ao seu gosto e semelhança.
E para quem isso não cair bem, que aguente ou vá embora.
A verdade é que, sob o prisma dos
valores democráticos, o Brasil é um e muitos ao mesmo tempo. Reduzi-lo a um e
sob o prisma do presidente é apequená-lo. Porque a riqueza deste país é a de
ser plural. Não existe só o Brasil sonhado por Bolsonaro. Existe também o
anônimo, pelo qual não parece interessar-se, que detesta a liturgia da
violência e das armas, o que quer viver em paz suas crenças políticas e
religiosas ou seu ateísmo.
Nem é verdade que existe apenas uma raça
no Brasil, sem mencionar que a palavra "raça" há muito tempo foi
abolida como pejorativa para definir os humanos. Existem diferentes etnias,
pessoas com diferentes cores de pele, com visões distintas e enriquecedoras do
mundo. E não é verdade que o Brasil seja um só coração que bate em uníssono no
querer e pensar com quem o governa, que foi o sonho de todos os ditadores.
Existem tantos corações quanto brasileiros. Com diferentes pulsações diante da
vida, com valores que os distinguem e enriquecem. E menos ainda existe um país
com "uma bandeira e meia", a do Brasil e a de Israel. Por que a
de Israel, por mais importante que seja, deve ser também a bandeira do Brasil?
E por que não a da China, ou a da Índia ou a do Quênia? A bandeira deste país é
um arco-íris de cores e símbolos de riqueza, paz e diálogo e não há por que ser
confundida ou fundida com a de outro país, mas respeitar a todos.
Esse querer padronizar um país sob o
molde de seus governantes sempre foi o sonho de todos os impérios autoritários
e populistas. E a receita de Bolsonaro, de um Brasil com um só coração e uma só
raça, me faz recordar o slogan criado na Espanha durante a ditadura
do general Franco, o de Una, Grande e Livre. Na verdade, não era nenhuma das
três coisas. Não era una porque havia então duas Espanhas em confronto
ideológico que produziu mais de um milhão de mortos. Tampouco era grande. Ficou
40 anos isolada do mundo, empobrecido material e intelectualmente. E menos
ainda livre, como prova a censura imposta à liberdade de imprensa e até mesmo
às artes e à literatura, com a lista de livros proibidos e os espanhóis que
tinham de ir à França para poder ver um filme sem censura.
Para que a Espanha voltasse a ser una e
plural ao mesmo tempo, livre de censuras, torturas e execuções daqueles que
sonhavam com uma Espanha plural e democrática, foi preciso esperar 40 anos e a
morte do ditador. Só então o país pôde abrir suas janelas para o mundo e
recuperar a pluralidade de suas riquezas espirituais. Só então perdeu o medo de
pensar em liberdade, para ser não uma Espanha monolítica, asfixiada pelos
estreitos slogans autoritários, mas plural e sem medo de respirar e amar com
seu coração e seus pulmões, e não com os do ditador.
Os slogans de quem despreza os valores
da liberdade e da pluralidade de ideias costumam estar impregnados da exaltação
da violência e da ignorância. Como o do general espanhol José Millán-Astray,
criador do mito de Franco, a quem se atribuiu a terrível frase: "Viva a
morte, abaixo a inteligência!" Tenho certeza de que o Brasil continua
preferindo gritar: viva a vida e viva a inteligência! já que só assim será
capaz de seguir respirando sem ser sufocado por lemas de morte e desprezo pela
razão.
Autor – Juan Arias – El
País
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