Seguidores

16 de agosto de 2019

São inocentes os rompantes linguísticos de Bolsonaro?

Conhecemos muito bem o perigo contido na linguagem, que nunca é inocente, porque também revela o abismo do nosso interior.
Protesto por recursos para a educação e contra Bolsonaro em São Paulo, nesta terça-feira. AMANDA PEROBELLI REUTERS
Existe o perigo de considerar as explosões verbais do presidente Jair Bolsonaro, sejam as escatológicas e de mau gosto sexual ou as mais ideológicas, como um tanto caricaturais e inofensivas. Não basta alegar que o presidente é "politicamente incorreto" à la Trump ou que isso é apenas algo natural e espontâneo nele. Pode acabar sendo mais grave e perigoso. Desde o surgimento da psicanálise, e depois de Freud e Lacan, conhecemos muito bem o perigo contido na linguagem, que nunca é inocente, porque também revela o abismo do nosso interior.
O Brasil está começando a sofrer o perigo da linguagem com a chegada ao poder do capitão reformado ultradireitista Bolsonaro. Nada seria pior do que tomar suas bravatas e loucuras linguísticas como algo sem importância a que deveríamos nos acostumar. Pode ser trágico.
Aonde a linguagem pode levar, às vezes abertamente suja e outras vezes escondida na ambiguidade, é algo que a Humanidade já experimentou ao longo da história com os maiores ditadores, e que sempre acabou em tragédia. Quando, dias atrás, um jornalista lhe perguntou sobre como ajudar a melhorar o meio ambiente — uma questão que o presidente despreza, chegando a negar a evidências de sua gravidade —, Bolsonaro respondeu que “é só você deixar de comer menos [sic] um pouquinho. Quando se fala em poluição ambiental, é só você fazer cocô dia sim, dia não, que melhora bastante a nossa vida também, tá certo?”
Houve quem achasse graça. Esquecemos que algo assim aconteceu, por exemplo, com Mussolini, na Itália. Quando iniciou sua revolução fascista, ele se divertia revelando alguns de seus gostos sexuais, como o de que preferia fazer amor "com camponesas sujas e peludas". Sabemos hoje como acabaram aqueles gostos escatológicos do Duce.
O perigo da linguagem de Bolsonaro reside não apenas no que alguns chamam de vazio intelectual, de pequenez de visão ou de falta de leitura. Pode se tornar algo mais sério, já que pode ser a idiossincrasia da personagem. Não é que tente parecer engraçado e espontâneo. Sua personalidade começa a ser vista como pequena de horizontes e com convicções autoritárias que, hoje vemos, eram típicas dos grandes ditadores, e que em muitas ocasiões foram o resultado de um complexo de inferioridade que os levou a superar com os excessos ditatoriais que conhecemos. Assim, por exemplo, com Mussolini, com Hitler ou com o Caudilho Franco, que sofria como soldado de pequena estatura e voz esganiçada e feminina.
Em Bolsonaro, talvez mais do que suas gracinhas escatológicas e fálicas, o que pode acabar sendo ainda grave são suas ideias autoritárias que parece querer impor a um país como o Brasil, que vive em democracia, com uma Constituição laica e moderna e com liberdade de credo e expressão. Um exemplo do perigo da linguagem bolsonarista, mesmo quando pode parecer inocente, mas que acaba colocando muros à verdadeira liberdade, foram suas palavras, na semana passada, durante a Marcha para Jesus, em Brasília.
O presidente disse que os brasileiros estão cansados de ouvir da "esquerdalha nojenta" defender que o "Estado é laico". E acrescentou: “Mas eu, Jonnie Bravo, sou cristão… respeitamos todas as religiões e quem não é cristão. Mas a maioria dos brasileiros é cristão e ponto final. O Brasil é um só povo, uma só raça e um só coração. É uma bandeira e meia: Brasil e Israel”.
À primeira vista, podem parecer palavras sem especial periculosidade, até mesmo de elogio ao Brasil. Não eram. Havia nessas palavras um ódio profundo à liberdade política. Não há motivo para a esquerda ser "repugnante" só porque ele não gosta dela. É uma opção tão legítima quanto a liberal ou a de direita. Quando ele e os seus "respeitam todas as religiões, e quem não é cristão", e acrescenta, incomodado: "e ponto final", está revelando uma espécie de concessão aos não-cristãos. Equivale a dizer que serão simplesmente suportados. E quando acrescenta que o Brasil é um só povo, uma só raça e um único coração, pode até parecer uma frase bonita. Não é. Tem entranhado o seu desejo, como o de todos os políticos autoritários, de querer plasmar o país ao seu gosto e semelhança. E para quem isso não cair bem, que aguente ou vá embora.
A verdade é que, sob o prisma dos valores democráticos, o Brasil é um e muitos ao mesmo tempo. Reduzi-lo a um e sob o prisma do presidente é apequená-lo. Porque a riqueza deste país é a de ser plural. Não existe só o Brasil sonhado por Bolsonaro. Existe também o anônimo, pelo qual não parece interessar-se, que detesta a liturgia da violência e das armas, o que quer viver em paz suas crenças políticas e religiosas ou seu ateísmo.
Nem é verdade que existe apenas uma raça no Brasil, sem mencionar que a palavra "raça" há muito tempo foi abolida como pejorativa para definir os humanos. Existem diferentes etnias, pessoas com diferentes cores de pele, com visões distintas e enriquecedoras do mundo. E não é verdade que o Brasil seja um só coração que bate em uníssono no querer e pensar com quem o governa, que foi o sonho de todos os ditadores. Existem tantos corações quanto brasileiros. Com diferentes pulsações diante da vida, com valores que os distinguem e enriquecem. E menos ainda existe um país com "uma bandeira e meia", a do Brasil e a de Israel. Por que a de Israel, por mais importante que seja, deve ser também a bandeira do Brasil? E por que não a da China, ou a da Índia ou a do Quênia? A bandeira deste país é um arco-íris de cores e símbolos de riqueza, paz e diálogo e não há por que ser confundida ou fundida com a de outro país, mas respeitar a todos.
Esse querer padronizar um país sob o molde de seus governantes sempre foi o sonho de todos os impérios autoritários e populistas. E a receita de Bolsonaro, de um Brasil com um só coração e uma só raça, me faz recordar o slogan criado na Espanha durante a ditadura do general Franco, o de Una, Grande e Livre. Na verdade, não era nenhuma das três coisas. Não era una porque havia então duas Espanhas em confronto ideológico que produziu mais de um milhão de mortos. Tampouco era grande. Ficou 40 anos isolada do mundo, empobrecido material e intelectualmente. E menos ainda livre, como prova a censura imposta à liberdade de imprensa e até mesmo às artes e à literatura, com a lista de livros proibidos e os espanhóis que tinham de ir à França para poder ver um filme sem censura.
Para que a Espanha voltasse a ser una e plural ao mesmo tempo, livre de censuras, torturas e execuções daqueles que sonhavam com uma Espanha plural e democrática, foi preciso esperar 40 anos e a morte do ditador. Só então o país pôde abrir suas janelas para o mundo e recuperar a pluralidade de suas riquezas espirituais. Só então perdeu o medo de pensar em liberdade, para ser não uma Espanha monolítica, asfixiada pelos estreitos slogans autoritários, mas plural e sem medo de respirar e amar com seu coração e seus pulmões, e não com os do ditador.
Os slogans de quem despreza os valores da liberdade e da pluralidade de ideias costumam estar impregnados da exaltação da violência e da ignorância. Como o do general espanhol José Millán-Astray, criador do mito de Franco, a quem se atribuiu a terrível frase: "Viva a morte, abaixo a inteligência!" Tenho certeza de que o Brasil continua preferindo gritar: viva a vida e viva a inteligência! já que só assim será capaz de seguir respirando sem ser sufocado por lemas de morte e desprezo pela razão.

Autor – Juan Arias – El País

Nenhum comentário: