Quem compra
tais cestas? Indagávamos e ficávamos peruando, indo de lá para cá a olhar para
as caras de possíveis compradores.
Todos os anos, chegam em casa duas
cestas de Natal, às vezes ao mesmo tempo, às vezes com diferença de dias. Uma
vem da Global que publica meus livros há 35 anos. A outra de uma amiga, Lygia
Carvalho, autora de um delicioso livro sobre Santos, mulher que discorda de mim
em muitas coisas, principalmente em política, mas somos a prova de que opostos
podem conviver, com respeito. O importante é que nestes dias as duas cestas
provocam minha memória afetiva. Trazem de volta um dos rituais mais
encantadores de minha infância. A abertura da única cesta de Natal que tivemos.
Araraquara, anos 1940, plena guerra. A
Mercearia Lauand deixava a mim e ao Luiz Gonzaga, meu irmão mais velho,
deslumbrados com a decoração natalina e com as cestas de Natal abertas,
revelando tesouros como figos secos, tâmaras, nozes, castanhas de Portugal,
latas de sardinha, vinhos (de onde seriam?), torrones, damascos (só sabia que
existiam pelos filmes sobre o Oriente, estrelados por Maria Montez e John
Hall), passas americanas em caixinhas vermelhas, caixas de bombons, vidros de
azeitonas, latas de marmelada, pessegada, goiabada, azeite, temperos.
Quem compra tais cestas? Indagávamos e
ficávamos peruando, indo de lá para cá a olhar para as caras de possíveis
compradores. Certa vez, um senhor, nos disseram que da família Lia, entrou e
escolheu duas. Quase caímos de costas. Nas nossas cabeças só quem podia comprar
aquilo seria um Morganti, um Lupo, um Gravina, um Albiero, um Blengini, um
Tedde Neto, um Chiquinho Vaz, um Dindin Garita, um Rubinho Lombardi, um
Zaramella, um Somenzari, um Vono, um Barbieri. Cestas eram inacessíveis a gente
como eu.
Até o dia em que meu pai chegou em um
carro de aluguel do Ponto da Matriz, ouvi barulho, corri abrir e ele entrou
majestosamente com uma cesta de Natal nas mãos, depositou-a sobre a mesa da
sala. Mamãe veio da cozinha, enxugando as mãos no avental. Havia sempre uma
sopa à tarde, substanciosa e barata. Quente, queimava a língua naqueles dias
causticantes de dezembro na cidade onde mora o sol.
“Que loucura é essa Totó?” Era o
apelido de meu pai, de nome Antônio.
“Comprei!” Meu irmão veio afobado:
“Vamos abrir logo, ver o que tem”.
“Nada disso”, disse mamãe, imperativa.
“Primeiro, todo mundo toma banho, põe roupa limpa, janta. Depois arrumamos a
cozinha e vamos abrir. Uma cesta de Natal, e esta é a nossa primeira, é muito
importante, coisa séria.”
Desta vez, Luiz e eu brigamos para
entrar correndo no banheiro, quando sempre era o contrário – vai você; não, vai
você; não, pode ir. Banho tomado, sabonete Gessy, todos vestidos, bonitos,
engolimos a sopa velozmente, vendo que papai fazia o mesmo, tão ansioso como os
filhos. Não teve sobremesa, aliás nem se usava, a não ser em certos dias. Papai
tomou leite frio com farinha de milho, um hábito da vida inteira. Cozinha
limpa, portas abertas, o ar parado, cigarras cantando, revoada de andorinhas
(desapareceram da cidade), papai ligou o rádio, ouvia-se a Hora do Brasil,
odiosa e chata desde aquela época.
“Como conseguiu comprar, Totó? Nunca
me disse nada.”
“Surpresa. Desde janeiro, a cada mês
separei um dinheiro. Ficou naquela caixa de sapatos da Casa Barbieri no fundo
do guarda roupa. Quando chegou novembro, tinha o dinheiro, fui lá, escolhi.”
Claro que não existia poupança, nada
disso, cada um guardava seu dinheiro como podia, quem tinha conta no banco
recebia um juro por mês, e somente os chiques tinham conta. A verdade é que,
retiradas as finas fitas de papel e uma palha que protegia tudo, as maravilhas
foram saltando. Meu pai sabia fazer suspense e criar clima, afinal, o irmão
dele, tio Geraldo, era o melhor rádio ator da PRD-4, Rádio Cultura, que para
orgulho geral nasceu antes da Rádio Nacional do Rio de Janeiro.
Para desespero nosso, não pudemos
tocar em nada daquilo espalhado sobre a mesa, iluminado por lâmpadas de 50
velas, afinal era tempo de guerra e devíamos economizar energia. Teríamos de
esperar oito dias até o Natal. Anos mais tarde quando vi o filme Os Últimos
Passos de Um Condenado à Morte, soube o que é esperar dia a dia, contando
horas, minutos, segundos, até sentar-se na cadeira elétrica ou na câmara de
gás. Segundo a segundo até colocar a mão em uma passa, uma castanha, um
chocolate, um damasco, uma castanha assada, um torrone Montevergine. Para enfim
atirar-nos com volúpia às delicias da cesta que, esgotada, ficou no alto de um
guarda-roupa na casa dos meus pais, por anos e anos, guardando recortes de
jornal, papel de presentes, contos que meu pai vez ou outra mostrava, fotos de
mamãe solteira, uma carta dela para ele, em que as palavras estavam escritas
com as silabas todas ao contrário, um código pessoal, que nunca deciframos.
Quais segredos eram trocados por um casal que vivia junto o tempo inteiro,
nunca se desgrudava? Um dia, a cesta desapareceu.
Autor:
Ignácio de Loyola Brandão – O Estado de São Paulo
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