Escola cívico militar (Foto de Marcelo Camargo da Agência Brasil).
Um
processo de mutação cognitiva cuja finalidade é desumanizar crianças e
adolescentes e produzir fascistas, alerta Ricardo Nêggo Tom.
O projeto
de poder teocrático e extremista de direita segue avançando dentro da sociedade
mundial, conceituando sociologicamente a questão. E um dos alvos principais
deste roteiro macabro e globalizado, são as crianças e adolescentes. Numa
espécie de paráfrase de um pedido feito por Jesus Cristo, que recomendou que
deixasse que as crianças fossem até ele, os extremistas usam Jesus como fachada
para o seu projeto de destruição, e desejam que as crianças vão até eles e os
ajudem a construir o reino do fascismo na terra. Um reino que ao invés de
jorrar leite e mel – como a terra prometida descrita na Bíblia - jorra sangue e
fel por todos lados. Como antítese da Canaã próspera e abundante prometida ao
povo de Israel, o mundo da extrema-direita louva a destruição, a fome e a
morte.
A
militarização da educação pública no Brasil atende ao objetivo principal de
doutrinar mentes em formação, estimular um raciocínio voltado para o
preconceito contra as chamadas minorias, e instar os recrutados a promoverem
uma guerra sociocultural no país. Tomemos como exemplo um vídeo (https://x.com/lazarorosa25/status/1994739852261085541)
que está circulando nas redes sociais, onde alunos de um colégio cívico-militar
de Curitiba estão cantando uma música que faz apologia ao ódio e à violência
contra a favela. Os chamados “cantos de guerra” comumente entoados durante
treinamentos e exercícios militares, estão sendo introduzidos nas escolas para
tornar lúdica a lobotomia a qual estão sendo submetidos os estudantes.
Um trecho
da “canção” diz: “Homem de preto o que é que você faz? Eu faço coisas que
assustam o satanás. Homem de preto qual é sua missão? Entrar na favela e deixar
o corpo no chão”. Aqui temos uma clara criminalização dos moradores das
favelas, classificando a todos, sem exceção, como bandidos e alvos de uma
perseguição institucional por parte das forças de segurança do Estado. Ao mesmo
tempo, vemos um lapso de coerência na licença poética apresentada na letra da
música em questão, quando um modelo de ensino que se diz alinhado a moral, a fé
cristã e aos bons valores, se propõe a fazer algo que nem satanás – o inimigo
imaginário da fé cristã – jamais faria e ficaria assustado se visse alguém
fazer. Como diria aquela música dos Engenheiros do Hawaii: “o fascismo é
fascinante e deixa gente ignorante fascinada”
Como uma
espécie de escolinha dominical do cristofascismo, a educação cívico-militar não
apenas suprime a autonomia e a liberdade de pensamento e existência dos alunos,
mas sobretudo, produz seres humanos que irão suprimir a autonomia e a liberdade
de pensamento e existência dos outros. E isto será feito por meios opressores,
violentos e até letais, como sugere a canção de guerra citada anteriormente.
Não há ineditismo em tal projeto, mas apenas a repetição de uma tragédia como
farsa. A Juventude Hitlerista foi um exemplo, quando crianças e jovens alemães,
entre 6 e 18 anos de idade, eram obrigados a se alistar na instituição para
serem treinados de acordo com os interesses nazistas. Assim como Hitler, os
extremistas brasileiros sabem que o modelo de escola pública no país não é
capaz de “fascistizar” a juventude. Por isso, é preciso propor novos modelos
educacionais que favoreçam seus planos, sob a égide da qualificação do ensino.
Eu
consideraria que estamos diante de uma tentativa de impor um modelo
cívico-teocrático-militar, onde a linguagem religiosa cristã é introduzida para
dar mais legitimidade ao projeto. Deus como a base da educação, o Estado como
seu representante legítimo, e os alunos como instrumentos de sua vontade e
futuros soldados que defendem a manutenção da ordem teocrática-militar dentro
de uma “nova” civilização. A invasão neopentecostal nas escolas e universidades
do país, promovendo intervalos bíblicos e supostos cultos de avivamento e
conversão onde alunos entregam suas almas para Jesus, é parte de um roteiro que
conta com a colaboração de muitos representantes do Estado. Inclusive, do campo
progressista. Uma farsa que nos levará a uma tragédia social que pode se
configurar como o nosso apocalipse particular. Um conto da aia na vida real que
causará muita dor e ranger de dentes.
Uma das
estratégias utilizadas para rebater os críticos desse projeto cristofascista, é
dizer que aqueles que se opõem são do mal, pertencem ao diabo e que estão
incomodados com a presença de Jesus na educação brasileira. Nada é de novo no
front, mas é algo que ainda conta com muito apelo popular por invocar o
cristianismo como defensor da ideia. Para potencializar ainda mais o projeto e
atrair mais adeptos e simpatizantes, artistas e personalidades estão sendo
recrutados, ou se permitindo recrutar, para fortalecer o discurso de
transformação social através da conversão ao “reino de Deus”. As atividades dos
“Legendários das montanhas” – onde artistas e empresários se submetem a uma
espécie de treinamento militar para se reconectarem com a sua essência divinamente
masculina – são um exemplo. Sem falar na adesão de artistas completamente
esquecidos pelo público, que resolverem aparecer transtornados, digo,
transformados, e defendendo fascistas como se estivessem produzindo arte.
Quando a
teóloga alemã Dorothee Sölle cunhou o termo “cristofascismo”, ela chamava a
atenção para o revisionismo evangélico que os seus artífices fariam para tentar
desconstruir a ideia de um Cristo voltado para a promoção da igualdade e defesa
dos pobres e marginalizados. Até porque, instituído como um símbolo de poder e
realeza divina e terrena num mundo injusto e desigual, Jesus, o “rei dos reis”,
não poderia estar ao lado dos menos favorecidos. Ele seria um justo juiz. E a
sua justiça, dentro de uma visão cristofascista, consiste em naturalizar as
desigualdades e os preconceitos, legitimar a violência imposta contra a
“rebeldia” daqueles que lutam contra eles e santificar aqueles que reprimem
toda e qualquer tentativa de tornar o mundo um ambiente mais igual, mais justo
e mais fraterno.
Quando o
deputado Nikolas Ferreira declarou que “Jesus não veio acabar com a pobreza,
ele veio pagar um preço que ninguém poderia pagar”, e Bolsonaro afirmou que
“Jesus Cristo não comprou uma pistola porque não tinha naquela época",
eles estavam propagando uma fé cristofascista que diviniza o ser humano e
humaniza o ser divino à imagem e semelhança do transmissor da mensagem. Ambos
defendem a morte, seja como salvação religiosa, seja como salvação social. A
ideia de que foi preciso Jesus morrer em alto grau de dor e sofrimento para que
a humanidade tivesse vida eterna, e que ele teria uma arma para se defender dos
seus perseguidores à época, sugere que devemos entregar a nossa vida pelo
“projeto de salvação”, e matar todos aqueles que se opõe a ele para fazer a
vontade de Deus.
Uma
lógica fascista alicerçada em princípios ideológicos e estratégias de
comunicação que sustentam e defendem sistemas políticos autoritários e
ultranacionalistas, suprimindo subliminarmente o conceito de democracia e os
direitos individuais. Uma essência extremista que reside na primazia absoluta
do Estado sobre o indivíduo, na crença em hierarquias naturais e na designação
de homens escolhidos por Deus para fazer a sua vontade na terra e na
justificação da violência para atingir objetivos políticos a pretexto da defesa
dos interesses nacionais. Nesta lógica prevalece o culto a um líder, a
padronização do comportamento e a glorificação da guerra e da força e
estratégia militares como meios para se promover a grandeza da nação. O nosso
conto da aia nunca esteve tão próximo da materialização.
Autor:
Ricardo Nêggo Tom - Músico, graduando em jornalismo, locutor, roteirista,
produtor e apresentador dos programas "Um Tom de resistência",
"30 Minutos" e "22 Horas", na TV 247. Publicado no site Brasil
247.