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14 de julho de 2025

Sylvia Moretzsohn: Sobre escolhas difíceis e óbvias.

São Paulo, 10 de julho de 2025. manifestação contra os “inimigos do povo”. Foto de Paulo Pinto da Agência Brasil.

A gravíssima e ao mesmo tempo estapafúrdia e destrambelhada agressão à soberania nacional expressa na carta de Trump, que o governo brasileiro fez o favor de devolver com a resposta ao mesmo tempo serena e incisiva que o episódio pedia, já foi objeto de muitas análises bem fundamentadas, que exploraram diferentes aspectos dessa ameaça, especularam sobre possíveis consequências e convergiram num ponto: a conclusão de que o efeito foi oposto ao pretendido, fortaleceu Lula e deu mais fôlego às manifestações realizadas em várias capitais na última quinta-feira, 10 de julho, ampliando o protesto originalmente voltado contra o Congresso “inimigo do povo” para incluir o repúdio a essa inusitada ofensa, com direito a queima da bandeira norte-americana, que fez lembrar os velhos tempos da guerra fria e das reações contra o “imperialismo ianque”.

A aprovação de uma moção de louvor a Trump pela Comissão de Relações Exteriores da Câmara, horas antes da carta malcriada que anunciava o tarifaço sobre produtos brasileiros caso o STF insistisse em processar Bolsonaro, foi mais um detalhe que ajudou a colar no Congresso a pecha de inimigo, agora não só do “povo” – dos pobres, dos trabalhadores –, mas do país. Por isso mesmo é preciso atenção aos movimentos da política doméstica voltados para a campanha eleitoral de 2026.

O “nós contra eles”, expressão da luta de classes que sempre causou urticária na elite e que foi tão enfaticamente condenada pelos seus prepostos na imprensa hegemônica nos últimos dias, em resposta à campanha disseminada nas redes contra um Parlamento que inviabiliza qualquer medida do governo em favor de alguma justiça social, ganhou inesperadamente uma legitimidade inquestionável.

Mexer com os brios patrióticos de qualquer povo dá nisso. Até representantes da classe dominante ficam incomodados. Por isso foi tão divertido observar a reação da grande imprensa, em particular a dos dois principais jornais paulistas, em seus editoriais do dia seguinte à agressão do presidente norte-americano. “Chantagem rasteira de Trump não passará”, escreveu a Folha, subitamente imbuída do espírito republicano antifranquista.

“Coisa de mafiosos”, acusou o Estadão, num texto de surpreendente contundência, que provocou comentários jocosos, como o do jornalista Cid Benjamin, um dos mais conhecidos militantes contra a ditadura e cofundador do PSOL: Está todo mundo estranhando o editorial do Estadão, com uma combatividade inesperada.

Explico o que ocorreu.

Era feriado, 9 de julho, dia em que os paulistas prestam homenagens à República Velha. Os Mesquitas saíram pra um almoço de comemoração da efeméride e a redação do texto ficou a cargo de um estagiário. Resultado: ele ficou à esquerda até mesmo da posição do PSOL…

Impossível não comparar esse editorial com o que o jornal publicou em 8 de outubro de 2018, em seguida ao primeiro turno da eleição daquele ano: “Uma escolha muito difícil” opunha o “truculento apologista da ditadura militar” ao “esquerdista preposto de presidiário”. Centrava-se na questão econômica – porque, afinal, o que importava era o saneamento das contas públicas, a manutenção do teto de gastos e da reforma trabalhista definidos pelo governo Temer – e, se deplorava a ausência de qualquer proposta de Bolsonaro nesse campo, investia fortemente contra as teses do PT, que “lograram mergulhar o país numa profunda crise econômica, política e moral”.

Por sinal, o texto ressaltava exatamente o aspecto moral da campanha, planejada “de dentro da cela de Lula da Silva na Polícia Federal de Curitiba”, o que não seria segredo porque “até o programa de governo apresentado por Haddad se chama[va] ‘Programa Lula’”. De modo que, apesar da afetação de equidistância, não restava muita dúvida quanto à solução do terrível dilema entre a “ameaça” do retorno à “irresponsabilidade Lulo petista”, ainda mais comandada por um presidiário, e o truculento defensor da ditadura, que afinal foi um mal menor diante do perigo vermelho que rondava o país e está sempre à espreita.

É claro que o Estadão nem de longe podia imaginar o que aquele parlamentar que entrou para a política depois de afastado do Exército por tramar um plano terrorista em defesa do aumento do soldo, que assumiu a necessidade de dar um golpe, fechar o Congresso e “matar uns 30 mil” numa famosa entrevista a um programa televisivo irrelevante mas que, uma vez no ar, alcança repercussão até hoje, que deveria ter perdido o mandato ao exaltar o ícone da tortura no Brasil ao votar pelo impeachment de Dilma Rousseff e que pautou toda a sua campanha na base de mentiras descaradas e ameaças frontais aos mais elementares princípios democráticos, é claro que o Estadão nem de longe poderia imaginar o que aquele parlamentar poderia fazer caso assumisse a presidência da República.

Agora, diante desse “espantoso episódio” de atentado à soberania nacional, conclui que ele “serve para demonstrar, como se ainda houvesse alguma dúvida, o caráter absolutamente daninho do trumpismo e, por tabela, do bolsonarismo”. Detona o governador paulista, por ora o candidato de estimação da Faria Lima, enquanto a Folha apenas o chama a escolher de que lado está: “Vestir o boné de Trump, hoje, significa alinhar-se a um troglodita que pode causar imensos danos à economia brasileira”. Chama Bolsonaro de irresponsável, classifica-o, ao lado de Trump, de “dejetos da democracia”, e exorta “aqueles que são verdadeiramente brasileiros” de não se curvarem à sabujice.

É quase um Churchill diante da agressão nazista: “We shall never surrendeeeeeeerrrrrr!!!!!”.

Pois sim, é muito bonito demonstrar tamanho fervor patriótico, mas ninguém há de se enganar sobre o lado que esta imprensa continua a defender na… luta de classes. A propósito, o Jornal Nacional dedicou todo o seu primeiro bloco da edição de 10 de julho à repercussão negativa da carta ameaçadora, tanto na imprensa estrangeira quando entre empresários brasileiros, e abriu espaço para uma longa entrevista em que Lula foi muito enfático na defesa da soberania nacional e na atuação do STF na condução do processo contra a tentativa de golpe de Estado. A edição, entretanto, não deu um pio sobre as manifestações daquela noite.

Como escreveu o professor de relações internacionais da UFRJ Elídio Borges Marques num comentário no Facebook, “embora o conjunto do jornal tenha sido favorável ao Lula (falta de opção da burguesia exportadora?), após o término os entrevistadores o ‘corrigiram’, informando que o julgamento de Bolsonaro ainda está ocorrendo, que ele disse que não queria dar golpe, não. Depois, mais um capítulo da fase ‘tapas na cara’ da novela Vale Tudo (Solange black bloc meteu a mão na cara de Maria de Fátima trumpista). E depois… o imperdível documentário sobre a trajetória do Dr. Roberto explicando exaustivamente como, depois de uma distração inicial, a Vênus cobriu linda e corajosamente – sob ameaças de helicópteros armados na janela – a campanha das Diretas. No dia em que, mais uma vez, ignorou o mais importante. Depois da equivalência entre as manifestações “Ele Não” e “Ele Sim”, não deixa de ser irônico. Viva o Dr. Roberto, a quem devemos a nossa democracia. Na medida em que eles quiserem”.

Para concluir, recorro a outro post de Elídio, que me parece ter sintetizado com muita clareza a importância da reação do governo e o que nos aguarda daqui em diante: O conjunto de lapadas no Trump e no trumpismo brasileiro – oficialmente chamado de ‘Entrevista de Lula ao Jornal Nacional’, bem como a outros órgãos de comunicação – é um forte indício de que:

1. o veterano, quando quer, se posiciona.

2. o veterano, quando precisa, se posiciona.

3. o veterano, quando sente as bases sociais se mexerem, se posiciona.

Lula não é um salvador da pátria, mas é um agente de características particulares e ainda, felizmente, muito capaz de refletir o movimento real do campo popular e, com isso, incentivá-lo. Nosso – partilho inteiramente a sensação e responsabilidade – entusiasmo com os ‘jabs’ de hoje não pode nos distrair por muitas horas de que:

1. as direitas estão agindo e agora, grande parte delas e da classe dominante, está disponível para participar de acordos.

2. os atos foram bastante positivos e importantes para o campo popular, sinalizando um potencial de desenvolvimento.

3. a direção do campo lulista ainda está longe de ter jogado toda a força nas mobilizações, com as quais está desacostumada.

4. o veterano e seus partidários tendem sempre à conciliação (ele próprio anunciou que a resposta será concertada com o empresariado).

5. o impulso mobilizador – nas redes e ruas – é decisivo não apenas para conter as forças nefastas e vorazes da direita no congresso como para manter vivo este impulso animador de Lula.

Acordos serão discutidos nos próximos dias. Cabe a nós traçar no chão o risco do qual não aceitamos passar. E, sobretudo, fortalecer neste ‘embate’ o nosso polo, o que sabe que as lutas contra Trump, Bolsonaro, a injustiça tributária, a hiper exploração da classe trabalhadora e o ‘centrão’ fazem parte de uma mesma grande luta e que no lado de lá dela não pode haver mais que eventuais aliados muito táticos e que todos já provaram ser absolutamente não confiáveis.

Acordos serão discutidos nos próximos dias, e não só no âmbito da nossa diplomacia. No mesmo dia da grande repercussão da resposta a Trump, os jornais voltaram a noticiar que Lula vem negociando para que o ex-presidente da Câmara Arthur Lira, o grande artífice do orçamento secreto e das manobras que em tantas vezes decisivas emparedaram o governo, concorra ao Senado por Alagoas. Isso, num contexto em que a extrema-direita vem fazendo campanha para ter maioria na Câmara e no Senado, o que lhe permitiria governar de fato o país, anistiar os golpistas, alterar a Constituição, interferir na composição do STF, independentemente de quem seja o presidente.

Estaria aí um dos limites essenciais que esse risco a ser traçado no chão nos obrigaria a respeitar?

São escolhas. 

Autora: Sylvia Debossan Moretzsohn – Publicado no Site VioMundo.

12 de julho de 2025

O Brasil sob ataque tarifário: a revanche de Trump contra o mundo e os idiotas úteis brasileiros.

Sanção dos EUA é resposta política ao julgamento de Bolsonaro e ameaça 2,5_ do PIB brasileiro. Foto - Daniel Torok - Casa Branca.

Em nome de Bolsonaro, Trump aplica tarifa de 50% e usa Brasil como peão geopolítico da extrema-direita. Não é o Brasil que provoca os Estados Unidos com o Brics ou se aproximando da China, como colocou a "The Economist". É Donald Trump que impõe uma lógica mafiosa à política internacional.

Sob a justificativa farsesca de "apoio a Bolsonaro: nosso aliado perseguido no Brasil" e em defesa da "liberdade de expressão nos Estados Unidos", Donald Trump impôs uma tarifa de 50% sobre importações brasileiras. Uma retaliação política travestida de política comercial. Ao fazer isso, Trump transforma o comércio exterior em campo de batalha ideológica. E rebaixa o Brasil à condição de peão em seu jogo geopolítico narcisista.

O impacto da medida pode chegar a 2,5% do PIB brasileiro, afetando exportações chaves, pressionando o câmbio e encarecendo insumos industriais. Mas o mais grave não é o prejuízo financeiro. É o recado político de uma liderança binária: ou você está a meu favor ou contra.

Na análise da psicopatologia política, Donald Trump encarna o que se denomina um ego grandioso defensivo com traços de narcisismo maligno. Sua liderança não se ancora em instituições ou estratégias, ela flutua conforme sua necessidade subjetiva de restauração da imagem. Ele não distingue o interesse nacional de sua própria honra ferida, e o Governo Trump II é "A revanche". É a política interna do revanchismo, que nos leva à diplomacia do ressentimento.

Críticas a Bolsonaro são percebidas como ofensas a ele mesmo. O 8 e o 6 de Janeiro se fundem. Bolsonaro é o seu duplo tropical: o Trump dos trópicos. Para Trump, Bolsonaro ser julgado por tentativa de golpe é tão inaceitável quanto ele próprio ter sido indiciado por tentativa de subversão institucional. Trata-se, portanto, de uma vingança projetiva travestida de sanção comercial.

Claro, não há como compreender a escalada tarifária sem localizar Trump como eixo simbólico da extrema-direita transnacional. Sua aliança com Jair Bolsonaro não é apenas pessoal: é parte de uma engenharia ideológica global. Os filhos de Bolsonaro, especialmente Eduardo, atuam nos EUA como idiotas úteis, operadores subalternos do trumpismo internacional. Ao punir o Brasil em defesa de Bolsonaro, Trump sinaliza ao mundo: o julgamento de um aliado da extrema-direita será visto como crime de lesa fidelidade. Trata-se de uma tentativa de transformar o Brasil num exemplo de jurisprudência da submissão neo imperialista estadunidense.

Lula e o governo brasileiro devem compreender que Trump não respeita gestos conciliatórios: ele os devora. Em especial países que para ele são "subdesenvolvidos" ou "nosso quintal".. termos que voltaram à boca da nova Equipe Trump II. Diante disso, Lula precisa ser menos sanguíneo e tomar a postura de "o adulto da sala". A resposta brasileira precisa repolitizar o debate interno: expor o quanto o bolsonarismo, em seu perigoso jogo transnacional, nos deixou vulneráveis para uma resposta tarifária muito mais política que comercial.

O Brasil virou alvo fácil: entre commodities substituíveis e dependência tecnológica. Diferente da China, com suas terras raras tem uma rainha neste xadrez, ou da Rússia, com sua energia, tem um cavalo. O Brasil não tem trunfos geopolíticos estratégicos. Exportamos commodities, importamos fertilizantes e tecnologias, nossa balança é frágil. Trump sabe disso. Por isso, não é guerra entre potências. É bullying imperial. E mais: os EUA respondem por quase 19% das importações brasileiras e 11% das exportações. Ou seja, o desequilíbrio é estrutural. Uma sanção tarifária de 50% não só impacta nossas vendas, mas encarece nossa própria produção interna. Aqui reside nossa maior vulnerabilidade.

O trumpismo precisa de inimigos, e o Brasil virou um deles. A Justiça brasileira, ao julgar Bolsonaro, tornou-se "inimiga". E o Brasil, que ousa diversificar alianças e retomar protagonismo nos BRICS, se tornou um alvo simbólico, um exemplo para os demais países que queiram ingressar no Brics no futuro. Bolsonaro é apenas um peão útil no tabuleiro autoritário trumpista. Esta não é apenas uma disputa comercial. As novas tarifas impostas por Trump ao Brasil expõem a mutação do sistema internacional sob a liderança dos EUA. Não se trata mais de acordos, valores em comum ou previsibilidade institucional. Trata-se de chantagem tarifária, típica de um isolacionismo mafioso, que exige submissão unilateral. 

Autora: Gisele Agnelli – Publicado no Site Congresso em Foco.

O nó górdio do lapso de escrita

  

Rodrigo Antunes - Lusa.

A Justiça portuguesa deu dois trunfos a José Sócrates. E ele, com o “instinto matador” que o caracteriza, agarrou-os e já não os larga. Um deles pode suspender o julgamento que se iniciou na semana passada. O outro tem uma natureza mais formal e menos prática. O primeiro é o do famoso “lapso de escrita”, uma expressão enigmática, para a maioria dos cidadãos, mas que procurarei traduzir nas próximas linhas. O segundo é o das declarações infelizes do procurador-geral da República, Amadeu Guerra, numa entrevista concedida poucos dias antes do início do julgamento. Finalmente, além de se agarrar aos dois trunfos que lhe foram concedidos de bandeja – o primeiro dos quais, em boa medida, como veremos, porque a Justiça não conseguiu julgá-lo em tempo mais útil… –, José Sócrates vai seguir a estratégia de disparar em todas as direções, atacando os três pilares que garantem o escrutínio dos crimes de colarinho-branco: os procuradores e os juízes, os partidos e a imprensa livre. E já começou pela comunicação social que, paradoxalmente, continua a aceitar dar-lhe palco à entrada e à saída de cada sessão de tribunal. Mas essa será a segunda reflexão que faremos neste texto. Vamos, para já, aos “trunfos” de Sócrates.

O que é o “lapso de escrita”? O lapso de escrita foi a explicação – Sócrates prefere dizer o “artifício” – que as desembargadoras da Relação de Lisboa, que reapreciaram o caso, na sequência do recurso do Ministério Público (MP), depois de o juiz de instrução, Ivo Rosa, ter feito ruir praticamente todo o edifício acusatório, encontraram para recuperar a acusação de três crimes de corrupção passiva. Inicialmente, a acusação do MP indiciava o arguido pelos crimes de corrupção passiva para o cometimento de “ato lícito”. Ora, o crime de corrupção por ato lícito tem uma moldura penal menos gravosa do que quando se trata de “ato ilícito” – e o prazo de prescrição é consideravelmente menor. Mas as desembargadoras da Relação, no seu acórdão, declaram que o ato lícito tinha sido “um lapso de escrita” porque, na verdade, Sócrates teria sido corrompido por “ato ilícito”. Esta conclusão das juízas faz sentido, se pensarmos em toda a narrativa do MP, durante o processo. Mas a verdade é que, salvo melhor opinião, essa pode ser, apenas, uma percepção. 

Ora, isto mudou tudo, oito anos depois da detenção do ex-primeiro-ministro: mudou a acusação (agravando-a), terá – segundo a defesa – manipulado o processo, e alterou todos os prazos, favorecendo a acusação e permitindo o julgamento de todos os crimes. Em tese, isto permitiria à Justiça contornar os seus próprios atrasos, que conduzem, sempre, à prescrição de crimes, por culpa própria ou por manobras dilatórias da defesa – e Sócrates apresentou mais de 50 recursos, ao longo destes quase 11 anos. Se quisermos, agora, explicar a diferença entre ato lícito e ato ilícito, podemos socorrer-nos de uma imagem – necessariamente tosca, não passa de uma alegoria, mas, ainda assim, sugestiva. Imagine-se que alguém paga a uma equipa de futebol… para ganhar. O exemplo é conhecido e já foi muito discutido, em Portugal. Dois clubes defrontam-se e um terceiro clube, que é parte interessada, prefere que ganhe um deles. Se paga a determinados jogadores para que se empenhem mais, está a pedir-lhes que… cumpram a sua obrigação. Seriam, nesta imagem, corrompidos para cometerem um “ato lícito”. Mas se pagar a jogadores do outro clube para que percam, está a pedir-lhes que faltem ao seu dever. Seria um ato ilícito. O mesmo é válido quando se corrompe um autarca para que autorize a construção de uma urbanização em área de construção – ato lícito – ou em área protegida – ato ilícito. São exemplos grosseiros, mas que podem dar uma ideia mais aproximada do que estamos a falar.

O arguido queixa-se de que o Estado português alterou arbitrariamente a acusação, já depois de ela ter sido deduzida pelo MP. Se se provar que foi isto que aconteceu, ou não há julgamento ou o julgamento terá de ser muito diferente. Ora, foi isto mesmo que Sócrates foi apresentar ao Tribunal de Justiça da União Europeia, em Bruxelas: o arguido queixa-se de que o Estado português alterou arbitrariamente a acusação, já depois de ela ter sido deduzida pelo Ministério Público. Isto pode ser um imbróglio e, se se provar que foi isto que aconteceu, ou não há julgamento ou o julgamento terá de ser muito diferente.

Já as declarações de Amadeu Guerra, procurador-geral da República – que, aliás, acusando o toque, já teve necessidade de vir explicar-se… – foram insólitas. Segundo o PGR, Sócrates teria a “oportunidade” (ao contrário do que diz Sócrates, ele não usou o termo “a obrigação” …) de, em tribunal, “provar a sua inocência”. Sabemos o que ele quis dizer: é verdade que, em princípio, qualquer de nós que estivesse inocente, e tivesse disso a certeza, preferiria ser julgado rapidamente, em vez de, através de recursos, permanecer num limbo cívico e jurídico durante uma década, à espera das prescrições. Mas também é verdade, como diz, com toda a razão, José Sócrates, que cabe à Justiça provar a culpabilidade de um cidadão e não ao cidadão provar que está inocente. Com isto, Sócrates levanta um incidente, pondo em causa a equipa de acusação do MP, mas não deverá ter grande ganho de causa, porque, além de as declarações poderem ser contextualizadas, terá sempre de haver uma equipa do MP no julgamento.

Sobre o ataque cerrado à comunicação social, é extraordinário como um primeiro-ministro que dedicou boa parte do seu tempo a atacar jornais e a processar jornalistas – em processos que ou não foram para a frente ou perdeu –, que perseguiu telejornais (toda a gente se lembra do que fez ao Jornal de Sexta-Feira de Manuela Moura Guedes e do que disse desse “telejornal travestido”), que procurou usar a PT para controlar uma televisão, possa vir agora, sem se rir, dar lições de ética e de deontologia aos jornalistas. Em democracia, a denúncia dos crimes de colarinho-branco deve-se a três pilares fundamentais do Estado de direito democrático: primeiro, separação de poderes, com órgãos judiciários e judiciais independentes e a possibilidade de investigar, deter, julgar e, se for o caso, punir os titulares de cargos públicos; segundo, uma oposição livre e atuante, que fiscaliza e escrutina; terceiro, uma imprensa livre, que investiga e denúncia. Sem esses pilares, um político com as características pessoais e políticas de José Sócrates (e não me refiro ao cometimento de eventuais crimes) poderia tornar-se um líder de uma qualquer democracia dita “iliberal” – como as que conhecemos numa Hungria ou numa Turquia… – e estar ainda à frente dos destinos do País. É que, se repararmos bem, os alvos da ira de Sócrates são sempre estes três pilares: os procuradores e juízes, os partidos (“a direita”, neste caso e, até o seu PS, com o qual se zangou) e a comunicação social. Não é por acaso. 

Autor: Filipe Luis – Subdiretor – Artigo publicado na Revista Visão.