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7 de maio de 2018

Alfândega!


‘Não perguntei o que você fazia para não piorar a situação, mas para mudá-la’

“Você tinha noção que a Terra tava aquecendo?”, pergunta o anjo da esquerda. “Tinha”, respondo, sem saber se a consciência da tragédia me deixa mais próximo do céu afinal, eu era dos que acreditavam no problema, não era dos “negacionistas” ou me coloca mais perto do inferno bem, se acreditava, por que não fiz nada? A próxima pergunta, vinda do anjo da direita (vamos chamá-los de AE e AD, daqui em diante), sugere o viés dos meus interrogadores: “Você tinha carro?”. 
Sinto um frio no estômago e tenho medo de que seja um dos últimos frios que sentirei não direi na vida, posto que vida já não há, mas, digamos, na existência. Gaguejo: “Eu, eu, eu separava lixo orgânico e reciclável em casa e quando eu ia pegar tomate no supermercado eu evitava pegar da bandejinha de isopor e –”, “Você ouviu a pergunta”, interrompe o AE, “Tinha ou não tinha carro?”. “Tinha, eu tinha carro”. O AD anota qualquer coisa num retângulo que parece ser um tablet de granito.
AD: “Você tinha consciência de que o Brasil era um dos países mais desiguais e injustos do planeta?”. “Aham”. AE: “E o que você fazia pra mudar essa situação?”. Nessa eu acho que vou me sair bem. “Em primeiro lugar eu não desviava dinheiro, não subornava guarda de trânsito, não–”. O AE se impacienta: “Eu não perguntei o que você fazia pra não piorar a situação, mas pra mudar a situação”. “Bom, eu, eu, eu tentava usar meus textos pra falar desses assuntos todos e contribuía em ‘crowdfunding’ de projetos legais e... Eu doei umas camisetas pros desabrigados do prédio que caiu–”. “Fazia tempo que você queria se livrar daquelas camisetas”, diz o AE. “Que mais?” “Bom, eu, eu tentava votar bem, votar em pessoas que–”, “Em quem você votou pra deputado estadual nas eleições de 2014?”. “É... Pra federal foi na Erundina e–”, “Estadual!”, grita o AE, dando um chacoalhão com as asas que faz umas três penas se descolarem e descerem planando, lentamente, em direção à nuvem. 
“Eu não lembro o nome! Era um cara que prometia lutar pelas escolas da periferia! Não lembro o nome! Eu vou pro inferno por causa disso?!”. Os anjos me encaram por uns segundos. Conferem algo no tablet. “Tô vendo aqui que você tomava cerveja artesanal num bar hipster a seis quadras da cracolândia”. “O serviço era opcional e eu sempre deixava 10%!”. Os anjos me olham feio. “Vinte e cinco reais, um chope?”, diz o AE, balançando a cabeça. 
“Caras, ó, eu podia ter feito mais? Podia! Vendo em perspectiva, agora, parece pouco mesmo, mas a gente tá lá na batalha do dia a dia tem que ganhar dinheiro, pegar criança na escola, dar remédio pra tosse, entregar projeto, recolher o IR... Pô, um pouco de perspectiva, amigo! Eu fui um bom pai, um bom filho, nunca entreguei trabalho nas coxas! Cês tão vendo aí a humanidade! É só ‘trashêra’! Aposto que se pegar aí uma régua com Hitler de um lado e Gandhi do outro, eu tô mais pro lado do Gandhi, não tô?”. 
O AE sorri, mete a mão debaixo da asa. “Foi você quem deu a ideia”. Tira dali uma régua com Hitler de um lado e Gandhi do outro. Meu rosto aparece oscilando entre os dois extremos, procurando seu lugar e num estalo eu penso “Professor Duílio!”, era esse o nome do meu candidato a deputado estadual, “Professor Duílio”, mas agora é tarde, os anjos somem, tudo começa a rodar e.

Autor: Antonio Prata
Escritor, publicou livros de contos e crônicas, entre eles 'Meio Intelectual, Meio de Esquerda'.

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