‘Não perguntei
o que você fazia para não piorar a situação, mas para mudá-la’
“Você tinha noção que a Terra tava
aquecendo?”, pergunta o anjo da esquerda. “Tinha”, respondo, sem saber se a
consciência da tragédia me deixa mais próximo do céu afinal, eu era dos que
acreditavam no problema, não era dos “negacionistas” ou me coloca mais perto do
inferno bem, se acreditava, por que não fiz nada? A próxima pergunta, vinda do
anjo da direita (vamos chamá-los de AE e AD, daqui em diante), sugere o viés
dos meus interrogadores: “Você tinha carro?”.
Sinto um frio no estômago e tenho medo
de que seja um dos últimos frios que sentirei não direi na vida, posto que vida
já não há, mas, digamos, na existência. Gaguejo: “Eu, eu, eu separava lixo
orgânico e reciclável em casa e quando eu ia pegar tomate no supermercado eu
evitava pegar da bandejinha de isopor e –”, “Você ouviu a pergunta”, interrompe
o AE, “Tinha ou não tinha carro?”. “Tinha, eu tinha carro”. O AD anota qualquer
coisa num retângulo que parece ser um tablet de granito.
AD: “Você tinha consciência de que o
Brasil era um dos países mais desiguais e injustos do planeta?”. “Aham”. AE: “E
o que você fazia pra mudar essa situação?”. Nessa eu acho que vou me sair bem.
“Em primeiro lugar eu não desviava dinheiro, não subornava guarda de trânsito,
não–”. O AE se impacienta: “Eu não perguntei o que você fazia pra não piorar a
situação, mas pra mudar a situação”. “Bom, eu, eu, eu tentava usar meus textos
pra falar desses assuntos todos e contribuía em ‘crowdfunding’ de projetos legais
e... Eu doei umas camisetas pros desabrigados do prédio que caiu–”. “Fazia
tempo que você queria se livrar daquelas camisetas”, diz o AE. “Que mais?”
“Bom, eu, eu tentava votar bem, votar em pessoas que–”, “Em quem você votou pra
deputado estadual nas eleições de 2014?”. “É... Pra federal foi na Erundina
e–”, “Estadual!”, grita o AE, dando um chacoalhão com as asas que faz umas três
penas se descolarem e descerem planando, lentamente, em direção à nuvem.
“Eu não lembro o nome! Era um cara que
prometia lutar pelas escolas da periferia! Não lembro o nome! Eu vou pro
inferno por causa disso?!”. Os anjos me encaram por uns segundos. Conferem algo
no tablet. “Tô vendo aqui que você tomava cerveja artesanal num bar hipster a
seis quadras da cracolândia”. “O serviço era opcional e eu sempre deixava
10%!”. Os anjos me olham feio. “Vinte e cinco reais, um chope?”, diz o AE,
balançando a cabeça.
“Caras, ó, eu podia ter feito mais?
Podia! Vendo em perspectiva, agora, parece pouco mesmo, mas a gente tá lá na
batalha do dia a dia tem que ganhar dinheiro, pegar criança na escola, dar
remédio pra tosse, entregar projeto, recolher o IR... Pô, um pouco de
perspectiva, amigo! Eu fui um bom pai, um bom filho, nunca entreguei trabalho
nas coxas! Cês tão vendo aí a humanidade! É só ‘trashêra’! Aposto que se pegar
aí uma régua com Hitler de um lado e Gandhi do outro, eu tô mais pro lado do
Gandhi, não tô?”.
O AE sorri, mete a mão debaixo da asa.
“Foi você quem deu a ideia”. Tira dali uma régua com Hitler de um lado e Gandhi
do outro. Meu rosto aparece oscilando entre os dois extremos, procurando seu
lugar e num estalo eu penso “Professor Duílio!”, era esse o nome do meu
candidato a deputado estadual, “Professor Duílio”, mas agora é tarde, os anjos
somem, tudo começa a rodar e.
Autor:
Antonio Prata
Escritor,
publicou livros de contos e crônicas, entre eles 'Meio Intelectual, Meio de
Esquerda'.
Nenhum comentário:
Postar um comentário