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12 de maio de 2025

VAR: desmancha-prazeres do futebol?

AR instalou-se no coração do jogo um dispositivo que pretende limpá-lo de seus excessos - Foto de  Ander Gillenea - AFP.

O VAR, com sua tela, insere um hiato entre o gesto e a glória, um tempo de morte.

O gol era para ser um milagre pagão. Algo mudou: hoje, a rede balança, e o torcedor tem cada vez mais reticência. Será que viu o que viu mesmo? Seu grito mal dura, dura menos, pois se verte, a depender do lance, em espera, mais espera, longa espera. O VAR, sigla em inglês para Árbitro Assistente de Vídeo, entrou no jogo com a promessa da justiça, mas trouxe um efeito colateral: a substituição do mistério do jogo pelo mistério da máquina. O VAR, com sua tela, insere um hiato entre o gesto e a glória, um tempo de morte. 

O que está em curso é mais do que a simples introdução de uma ferramenta. É uma mutação na lógica do espírito, uma questão que vale debate e muita reflexão. Todo jogo, como descrevia Johan Huizinga, é parte de um universo lúdico que suspende, por um tempo e através de regras e sentidos particulares, as vocações e atribuições do “mundo real”. O VAR, ao tentar transformar esse universo em tribunal, acaba destruindo parte da magia da suspensão. 

O princípio da isonomia faz parte do mundo do jogo, claro. Mas se a busca pela isonomia passa a entrar em conflito com o encantamento necessário para a própria existência do mundo do jogo, o que fazemos? A busca pela eliminação do erro, que é um horizonte inalcançável em plenitude, não estaria eliminando a beleza da incerteza, tão cara ao mundo do jogo? Não seria o VAR, para usar um termo de Huizinga, um tipo de “desmancha-prazeres”, como aquele adulto que interrompe a brincadeira infantil com regras excessivas, cronômetros e relatórios? 

Instalou-se no coração do jogo um dispositivo que pretende limpá-lo de seus excessos, corrigir lhe os desvios, higienizá-lo daquilo que o torna visceral. O VAR trouxe consigo uma liturgia fria. Há uma tecnocracia por trás da cabine de vídeo. Ela se apresenta como imparcial, objetiva, precisa. Mas o que ela oferece, no fundo, é uma nova forma de poder: o de congelar o instante, transformá-lo em análise forense, conduzida, ainda assim, por seres humanos, seres do erro. Se não é mais o apito do juiz que decide, é o gesto do seu dedo indicador em direção à orelha, o suspense do estádio inteiro diante de um monitor. Quem se beneficia desse novo ritual? 

Continuamos debatendo os mesmos lances — mas agora com a tentação e a fissura pelo zoom, pelas linhas digitais, pelos áudios dos árbitros em operação, pelas novas terminologias. A dúvida, essência do futebol, continua, mas muito menos leve, pois a promessa de justiça tecnológica torna-se um desejo pelo erro zero, o que é impraticável. Ruídos, protocolos, decisões que continuam não convencendo. E o torcedor, onde fica? Perdido entre o já e o talvez. 

É preciso dizer: nem tudo que é justo é belo, e nem tudo que é belo é justo. O futebol vive dessa tensão. A comemoração pode virar cálculo? Ou melhor, a comemoração deve virar cálculo? Há quem diga que é preciso evoluir, que o erro humano é inadmissível. Ora, mas o que estamos fazendo é uma troca de roupa: o erro continua sendo humano, mas por vias mais moderninhas. Este futebol artificialmente purificado só é mais esquecível, menos estimulante, e um tanto entediante. Pois, qual é o benefício que existe por trás da transformação do gol em uma hipótese? 

O VAR é, por excelência, a crença de que é possível controlar tudo, até mesmo o que, por definição, é fugidio. Rever o papel do VAR não significa defender o caos. Significa lembrar que o futebol é um drama encenado por corpos em movimento, dentro e fora de campo. Impedir o movimento dos corpos é impedir o futebol. Significa lembrar, também, que o jogo precisa do risco, porque ele não precisa ser protegido de si mesmo. Não se trata de ser contra a tecnologia, mas de lembrar que nem tudo que se pensa poder medir é possível de ser medido. E, como diria Nelson Rodrigues, o futebol não nasceu para ser lógico, embora tenha lógica. Nasceu para ser trágico. 

Autor: Bruno Vieira Borges é formado em História pela Universidade de São Paulo, onde atualmente faz Mestrado em Sociologia. Ele está associado ao Observatório do Lazer e do Esporte (OLÉ), ao Mobilidades: Teorias, Temas e Métodos (MTTM) e ao UrbanData-Brasil. Publicado no Site Brasil de Fato.

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