Estamos no período do Enem, o maior vestibular do Brasil, e isso me fez pensar um pouco sobre todos os aspectos envolvendo o exame. Já havia escrito uma coluna, há alguns meses, sobre ele e sinalizei que via com ressalvas seu processo de expansão alinhado a um contexto em que todos os outros vestibulares deixassem de existir. Isso já aconteceu em algumas instituições e sigo não vendo com bons olhos. Afinal, não acho que o processo de ingresso no ensino público brasileiro deva ser um monopólio de um só exame. No entanto, para além dessa ressalva, sou um grande admirador do Enem e acredito, humildemente, que a prova, enquanto instrumento de democratização do acesso ao ensino superior, deve ser um motivo de orgulho de todos nós. Seus impactos são notáveis e seus resultados falam por si.
A maior mobilidade já vista
Antes do Enem, se eu, paulista, quisesse ingressar em uma universidade do Rio de Janeiro, do Norte ou de qualquer outra região, teria que me submeter a uma relativa complexidade de logística e também arcar com um custo que eu simplesmente não teria como assumir.
É fato que há universidades públicas em todos os estados e isso pode ser um ponto de partida para alguém defender a tese de que não há razão para incentivar a mobilidade, ou seja, não tem por que um paulista cursar uma universidade na Bahia. No entanto, não há os exatos mesmos cursos em todas, e cada uma delas tem suas particularidades que podem ser muito relevantes no processo de escolha. Aqui, de modo simplista, podemos citar as diferenças nos enfoques do mesmo curso em diferentes instituições, diferenças de bolsas e oportunidades entre as instituições, questões geográficas, etc.
O melhor cenário é aquele em que o agente tem acesso a todas as informações antes de tomar uma decisão, mas também, sobretudo, a oportunidade de escolher e concretizar. Isso foi proporcionado pelo Enem. Ele revolucionou o sistema de ingresso e temos na palma de nossas mãos o Brasil todo de opção. Isso tudo da nossa própria casa e cidade. Foi estudante paulista cursando na UFBA, aluno baiano cursando na UFRJ, gaúcho estudando na UFPA e amazonense cursando na UFG.
Diminui o elitismo nas universidades públicas
Sou da época que para ingressar na USP o único método era a Fuvest, um vestibular sabidamente elitista. Não só na USP, e não fui o único a passar por isso. Praticamente todos os vestibulares próprios das instituições assumiam uma personalidade mais elitista e havia, em cada cidade, uma verdadeira indústria privada de cursinhos que, basicamente, vendiam aprovações.
Na época, cursinhos populares e sociais ainda não eram comuns. Claro que havia um ou outro, mas nem perto da quantidade que existe hoje. Nesse contexto, para um jovem da rede pública ser aprovado em uma grande universidade pública era praticamente obrigatório investir em um cursinho privado. Mas nem todos tinham essa condição. Não coincidentemente, dava para contar no dedo, em salas de aula de universidades públicas de todo o país, quem era oriundo da rede básica pública de ensino. Em cursos mais concorridos então, como Direito ou Medicina, chegava a ter apenas um ou dois por turma.
Com o Enem, surgiu não apenas mais uma opção de ingresso, o que já é bom o bastante, como também um exame mais democrático e coeso com o que jovens da rede pública aprendiam em suas escolas.
Com ele, pouco a pouco, universidades públicas de todo o país tiveram suas composições de discentes mudando bastante. Foi quase que uma ruptura de conjuntura. Assim, pela primeira vez, os jovens da rede pública já não eram grandes exceções e conseguiam olhar para o lado de ver seus semelhantes. Isso não é trivial.
Exame democratizou o acesso ao ensino superior brasileiro
O Brasil está longe de ser o país que, verdadeiramente, mais se preocupa com a educação. Ainda temos muito a caminhar e a pauta segue, mais vezes do que eu gostaria, sendo instrumento de agenda nas mãos de políticas, de esquerda ou de direita. Quem lê minhas colunas sabe que, quase sempre, costumo focar em problemas e abordar o que está dando errado, ou, por outro lado, o que precisa de atenção. Mas aqui é diferente. Não que o Enem seja perfeito, mas ele precisa ser valorizado e reconhecido. É inovador. É democrático e acessível.
Sou do time que quer mudanças no Brasil e que sonha com uma nação menos desigual. Sei que há um limite do quanto isso pode ocorrer sem haver representatividade nas instituições, empresas e organizações. Essa representatividade não é possível sem que haja uma pluralidade no ensino superior e o Enem proporcionou isso.
Com ele,
um futuro jornalista do Fantástico terá um olhar mais sensível para pautas que
possam ajudar pessoas de comunidades, porque esse jornalista foi de uma
comunidade. Com ele, um futuro médico do SUS saberá como atender alguém de uma
periferia que nem sabe se expressar, porque ele pode ter tido um tio, familiar
ou amigo que também não sabia se expressar. Com ele, um juiz terá um olhar mais
sensível e humano ao julgar um caso, pois sabe exatamente o quanto o contexto
influencia as ações de um indivíduo. Com ele, um governante irá propor
políticas públicas coesas com demandas reais, pois sabe o que é, por exemplo,
ter a conta de água ou a de luz cortadas.
Vozes da Educação é uma coluna semanal escrita por jovens do Salvaguarda, programa social de voluntários que auxiliam alunos da rede pública do Brasil a entrar na universidade. Revezam-se na autoria dos textos o fundador do programa, Vinícius De Andrade, e alunos auxiliados pelo Salvaguarda em todos os estados da federação. Siga o perfil do programa no Instagram em @salvaguarda1. Texto escrito por Vinicius de Andrade para o Site DW.
Nenhum comentário:
Postar um comentário