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1 de novembro de 2021

Carta ao futuro!

Ação contra a emergência climática exigirá sobretudo altruísmo e afeto, sentimentos que permitirão que nossos netos possam conhecer lugares que amamos na infância.

“Tenho pensado muito sobre o mundo. Sobre o mundo em que vocês viverão. Sobre as cachoeiras, rios, florestas, restingas, mangue, praias que não sei se vocês conhecerão… As causas das mudanças no clima são tão profundas e envolvem tanta gente e tantos lugares! Será que essas minhas pequenas ações fazem diferença?” Essas foram frases ditas por minha amiga Cecília, em uma carta delicada e comovente endereçada às suas filhas. São duas meninas lindas, com seis e nove anos, cabelos cor de mel e sorriso tão puro quanto encantador. Seus nomes, que remetem à natureza e à paz, não poderiam traduzir melhor os valores e crenças que Ciça demonstra carregar em si. A carta amorosa tem “minhas lindas” estampada no título e poderá ser lida pelas pequenas destinatárias, em 2050, quando já terão passado dos 35 anos. 

Era 2015 quando tive a honra de ler essa carta, o que me causou muita emoção. As reflexões em torno dela reverberam até hoje. Pensei comigo “como é forte o amor, o cuidado e a proteção das mães e pais pelos seus filhos”. Pensei ainda em como é confortante se lembrar do cuidado cheio de afeto que recebemos dos nossos pais. É certo que cada um terá seus momentos de lembrança especiais. Lembro-me do chá dulcíssimo da minha mãe, quando eu ficava doente, e da minha travessia sobre a ponte feita de um único tronco de árvore, com os olhos fechados de medo, porém confiante porque estava no colo do meu pai. 

Não por acaso, lembrei-me agora, seis anos depois, daquela carta. As mudanças climáticas, mais uma vez, ganham pontos de audiência. O motivo – a conferência do clima que acontece ao final de cada ano e que começa daqui a apenas uma semana na Escócia. O Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) já concedeu o veredito final: as mudanças são generalizadas, rápidas e não param de se intensificar. Mais uma vez os jornais vão nos lembrar sobre o estado do planeta, com números atualizados e avolumado grau de certeza. O futuro tornou-se presente. A concentração de CO2 na atmosfera aumentou para 410 partes por milhão. A temperatura do planeta aumentou 1,1°C. O temido aumento de 1,5°C poderá ser ultrapassado antes de 2040. A temperatura de partes da Amazônia aumentou 2,5°C. O nível do mar aumentou 20 cm. E os humanos são inequivocamente responsáveis por todas essas mudanças.

Por muito tempo, cientistas (grupo no qual me incluo) acreditaram que, se compartilhassem o máximo possível os números e estatísticas como esses acima, seriam capazes de promover mudanças na direção de deter as mudanças climáticas. Décadas se passaram e, infelizmente, concluímos que ter informação científica é essencial, porém não é suficiente para promover as mudanças de atitude tão radicalmente necessárias hoje em dia.

O que teria motivado Cecília a escrever aquela carta tão comovente às suas filhas? Basicamente, uma campanha global criada por duas mulheres nos Estados Unidos, Jill Kubit e Trisha Shrum, que atuam em comunicação arte e ciência do comportamento humano relacionados às mudanças climáticas, respectivamente. Por meio de uma plataforma chamada Dear Tomorrow (querido amanhã, em inglês), essas ativistas vêm incentivando pessoas diversas a escreverem cartas que deverão ser lidas no futuro. Os destinatários são seus entes queridos, especialmente crianças, filhos, netos e familiares, mas também adultos e até uma versão mais madura de si mesmos. Os participantes compartilham no website cartas, vídeos e fotografias nos quais narram suas preocupações e seus esforços para melhorar as perspectivas de vida no planeta e elencam suas promessas de mudança nessa direção. O propósito com esse compartilhamento é inspirar os participantes e os outros a realizar mudanças no presente. 

Em cada depoimento, fica perceptível o desejo genuíno de que seus entes queridos apreciem suas palavras, décadas depois, preferencialmente em um ambiente natural belo, aconchegante, seguro, confortável e harmonioso. Certamente, nesse meio ambiente imaginário não estão incluídos desastres, temperaturas insuportáveis, falta de alimento, doenças ou conflitos humanitários.

Essa espécie de conversa intergeneracional amorosa, proposta por Kubit e Shrum, tem por aspiração usar a narração de histórias sobre a emergência climática para transpor as imensas barreiras que experimentamos até aqui para ações mais efetivas no combate ao problema. As ativistas descrevem o que muitos de nós temos percebido há um bom tempo: no campo das mudanças climáticas, o sucesso na comunicação com o grande público e nas ações políticas tem sido extremamente limitado. Não vemos no horizonte motivações reais para mudanças, o interesse sustentado da sociedade e, principalmente, passos concretos e ações de longo prazo. Ou seja, ainda não passamos do “blá-blá-blá”, como Greta Thunberg tão engenhosamente expressou no recente encontro, em Milão, às vésperas da COP-26. 

Portanto, projetos que envolvem comunicação, arte e sensibilização do público, como o de Kubit e Shrum, não poderiam ser mais urgentes. Espera-se com eles inspirar um pensamento mais profundo e ações mais ousadas sobre o clima. Conforme descrito no website das ativistas, o objetivo da premiada plataforma – com disseminação abrangente, mas ainda modesta em comparação à relevância – seria tornar as mudanças climáticas mais relevantes do ponto de vista pessoal, conectando-as a identidades e valores preciosos que os seres humanos compartilham, como amor dos pais, família e legado. Esses valores atravessam fronteiras políticas e sociais. Nessa direção, têm emergido outras iniciativas com o objetivo de promover mais engajamento social em relação às mudanças climáticas. É o caso da plataforma IseeChange (eu vejo mudanças, em português) que visa mobilizar os cidadãos a compartilhar histórias locais sobre as mudanças que testemunham ao seu redor. “Quase não vimos borboletas e nem mariposas este ano. Há 18 anos, tínhamos um quintal cheio de monarcas…”, lamentou um integrante nos Estados Unidos. E ainda da rede More Than Scientists (Mais que cientistas, em português) na qual cientistas do clima compartilham suas preocupações e esperanças sobre as mudanças climáticas, na condição de pais, cidadãos e membros de suas comunidades.

A leitura das diversas narrativas e imagens depositadas no Dear Tomorrow por mensageiros sorridentes, na maioria das vezes, com belas fotos de convívio amoroso em meio à natureza, revelam abundância de afeto e humanitarismo. Mas também há desespero e há desânimo. É simplesmente impossível não se emocionar. Role a barra da tela por apenas alguns minutos e dificilmente sairá ileso da experiência. “Querida Ezmae, você tem quase quatro anos […] eu me comprometo a não desistir […] por causa de você, eu continuarei a usar todo o meu tempo em encontrar soluções”, escreveu um avô obstinado. As promessas de mudanças feitas por diversas pessoas rumo às soluções para um futuro melhor são numerosas. Prometo: Andar de bicicleta. Desistir do carro. Não desperdiçar comida. Comprar orgânicos. Reciclar. Não usar descartáveis. Fazer compostagem em casa. Tornar a energia em casa mais eficiente. Reduzir o consumo de carne. Comprar produtos ambientalmente amigáveis. Não usar plásticos. Plantar árvores. Reduzir, Reusar e Reciclar. Usar a minha voz para um mundo mais seguro e saudável. Conscientizar os outros sobre as mudanças climáticas…

A inação em relação às mudanças climáticas vem recebendo um interesse crescente da ciência. A desconexão psicológica entre nossas escolhas hoje e os impactos no futuro tem sido apontada como a causa principal desse enigma. Basicamente, há uma distância psicológica fundamental entre quem toma as decisões no presente e aqueles que experimentarão os maiores impactos da mudança climática no futuro. Em um artigo científico publicado recentemente, Shrum realizou um interessante experimento para investigar mais a fundo essa questão. Inclusive, o entendimento científico das causas profundas enraizadas nesse comportamento humano explica muitas das nossas decisões pessoais – tais como aquelas relacionadas à aposentadoria, poupança e cuidados com a saúde – e é uma questão fundamental para vencer essa distância psicológica cujos efeitos são nefastos. 

No experimento de Shrum, mais de 1800 pessoas que viviam nos Estados Unidos foram convidadas a participar de um processo de escrita, com duração de cinco minutos, sobre os riscos das mudanças climáticas e como eles imaginavam que a vida das pessoas seria afetada lá em 2050. Os participantes foram divididos, de forma aleatória, em dois grupos experimentais: o primeiro escreveu um ensaio geral sobre os riscos das mudanças climáticas. O segundo grupo escreveu uma carta, sobre o mesmo tema, que seria entregue a alguém dali a 35 anos. A mensagem seria dirigida ao filho(a), neto(a) ou sobrinho(a) mais novo, no caso daqueles que possuíam tais laços. Caso contrário, a mensagem seria aberta por qualquer pessoa que nascesse no dia em que a carta era escrita. Nesse segundo grupo, portanto, havia conexão pessoal, seja direta ou indiretamente. Finalmente, um terceiro grupo (que servia apenas para comparação ou controle experimental) foi solicitado a escrever sobre sua rotina diária. Para participar da iniciativa, os participantes recebiam cerca de 4 dólares e foram informados de que, ao final, haveria um sorteio de mais 20 dólares. O tal sorteio era exatamente o “pulo do gato” que a pesquisadora usou como medida para avaliar a disposição e o altruísmo deles em contribuir para diminuir o problema das mudanças climáticas. Os participantes poderiam escolher entre guardar o bônus de 20 dólares todo para si ou doar uma proporção do valor, a sua escolha, para que árvores fossem plantadas por uma organização sem fins lucrativos. Os resultados da pesquisa de Shrum nos ajudam a refletir sobre como motivar nossa sociedade a sair do estado de paralisia para a ação na velocidade que a emergência climática exige. Os participantes que escreveram as cartas e os ensaios doaram 11% mais (em média, cerca de 7,5 dólares) para plantar árvores que aqueles que escreveram sobre temas alheios às mudanças climáticas. As mulheres doaram consistentemente mais que os homens. Sem grande surpresa, Shrum encontrou que os pais e mães doaram mais do que as pessoas que não tinham filhos. Talvez a única surpresa para a pesquisadora tenha sido que os que escreveram cartas não demonstraram mais “altruísmo” do que aqueles que escreveram os ensaios. Porém, ao examinar de forma mais minuciosa os experimentos, ela acabou descobrindo que, em comparação aos ensaios, as cartas eram mais eficientes para reduzir a distância social em relação às pessoas que vivem no futuro. Essa descoberta é bem relevante porque outros estudiosos já haviam apontado que eliminar a distância psicológica pode afetar as representações mentais dos indivíduos às mudanças climáticas e, por conseguinte, aumentar as suas preocupações e as ações de enfrentamento ao problema.

A sensibilidade diante do próximo e a disposição para agir e proteger não apenas a si mesmo, mas também as pessoas ao redor, é um tema que não se resume somente às mudanças climáticas. Os mesmos princípios estão em jogo, por exemplo, na solução da pandemia de Covid-19, que também tem abrangência global, ainda que as duas crises atuem em escalas temporais bem diferentes. Por outro lado, não há dúvida de que a solução para as mudanças climáticas e para a Covid-19 depende essencialmente de valores éticos, como altruísmo e senso de coletividade. Em outro trabalho, Shrum e um grupo de pesquisadores também encontraram uma importante relação entre a proatividade para agir na crise da epidemia de Covid-19 e na crise climática. Ou seja, as pessoas que tinham uma visão mais pró-ambiental do mundo também optaram por maior distanciamento social durante a pandemia. Segundo explicam, há diferentes tipos de motivação para agir de uma forma que beneficie os outros, desde razões mais egocêntricas (não se contaminar) a razões altruístas e coletivas – para não contaminar a sua família ou a sua comunidade.

A ciência vem avançando em diversas frentes e, pouco a pouco, vai nos nutrindo e nos fortalecendo com instrumentos para superar a emergência climática e outras grandes crises da humanidade. Obviamente, a solução dessas crises depende da transcendência do indivíduo para a tomada de decisão política. As escolhas individuais não são suficientes, mas são o ponto de partida e envolvem resgatar valores compartilhados, como amor, família e legado. Estar ciente sobre o número de toneladas de carbono liberadas na atmosfera pelos desmatamentos é obviamente fundamental para orientar decisões. Porém, o significado desse número poderá ser ainda mais transformador se vislumbrarmos que desmatamentos não apenas resultam em carbono emitido. Eles levam embora também espaços de afeto e simbolismos construídos ao longo da vida, desde a infância. A formação plena de cada ser humano depende do cuidado parental afetuoso pelo outro, que envolve muito mais que manter a integridade física, como ensinam os psicanalistas. Nas cartas expostas no Dear Tomorrow, fica claro que, para além de todas as angústias relacionadas ao futuro incerto, o risco de os filhos perderem os espaços de afeto e simbolismo relacionados à natureza está entre as maiores preocupações dos pais. “Espero que o mundo que você está desfrutando neste momento ainda esteja repleto das belas árvores das quais costumávamos passar por baixo quando você era um bebê”, escreveu um deles. E aqui as palavras de Cecília farfalham como folhagens ao vento: “Espero um dia levar meus netos a alguns dos meus lugares preferidos no mundo. Espero que tenha água para todos poderem desfrutar de seu frescor […] Como eu queria poder mudar o curso das coisas e convencer a todos sobre a importância e beleza da natureza! Será que consigo? Todo o meu amor, mamãe.”

Autora: Joice Ferreira – Doutora em ecologia, pesquisadora da Embrapa na Amazônia Oriental e uma das fundadoras da Rede Amazônia Sustentável (RAS).

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