Nada
mais confortável do que ler apenas o que queremos acreditar. E políticos
descobriram que podem sequestrar essa massa a seu favor e operar em um terreno
fértil.
Manifestante faz foto durante ato no Rio de Janeiro em apoio ao então candidato Jair Bolsonaro, em outubro/18 Tânia Rêgo (Agência Brasil)
A Primeira Guerra Mundial mudou
a história da civilização. A partir daquele momento, atrocidades ganhariam uma
nova dimensão, e o que a Europa viveu entre 1914 e 1918 abalaria os pilares da
sociedade.
Ao fim do conflito, um esforço
internacional se concretizou na criação de uma estrutura que tentaria impedir
que aquela tragédia voltasse a ocorrer. O projeto ganhou sede em Genebra,
recursos e milhares de horas de reuniões. Mas a Liga das Nações fracassaria
alguns anos depois.
Um outro fenômeno ainda mais revelador,
porém, foi notado nos anos que se seguiram ao fim do conflito. Cientistas de
diversas áreas, profundamente machucados pela perda de alguns ou de todos os
seus filhos nas trincheiras, passaram a recorrer a médiuns para que pudessem
entrar em contato com os mortos.
Desesperados, sem razão para viver ou
acreditar, muitas daquelas mentes optaram por colocar a ciência de lado e
simplesmente acreditar que poderiam falar com seus filhos. A história comovente é contada por Jay
Winter, em seu livro Sites of Memory, Sites of Mourning. Feridos em suas
almas, alguns deles deixaram suas convicções científicas na busca incerta por
uma solução para sua dor.
Tal história pode ajudar a decifrar o
motivo pelo qual, em plena era da internet, da ciência, do conhecimento e do
acesso à informação, uma parcela da sociedade escolhe em acreditar numa
promessa não comprovada, numa esperança, numa ilusão.
Diante de um mundo repleto de
incertezas e do questionamento constante da suposta normalidade, não é de
se estranhar que aqueles desconfortáveis com o aparente mal-estar saiam em
busca de promessas, certezas e de garantias, ainda que fabricadas e mentirosas.
E nada mais confortável do que ler apenas o que queremos acreditar. Sem
contraditório, sem desconstrução.
Minada profundamente em seu orgulho, com
um exército de desempregados, corrupção, 60 mil assassinatos e descobrindo que
não existe um atalho para o desenvolvimento, uma parte da sociedade brasileira
optou por apenas consumir o que possa confirmar as teses sobre as quais está
construída. Infelizmente, muitas delas são racistas e autoritárias.
E um grupo no poder descobriu
rapidamente que, com atalhos intelectuais, poderia sequestrar essa massa a seu
favor e operar em um terreno fértil.
A desinformação não é uma novidade de
nossa era. Governos mantiveram por décadas operações de enormes proporções para
censurar e manipular a opinião pública. Desta vez, seus artífices possuíam um
enorme arsenal tecnológico, com um poder inimaginável há apenas poucos anos.
Assim, nesse contexto, prosperaram
pseudonotícias como a do "Kit Gay", a ameaça comunista iminente,
a tese de que os termômetros estão nos locais errados, o poder ilimitado do
Foro de São Paulo, o questionamento do formato do planeta e mesmo ideias
conspiratórias de um astrólogo de rede social. A última dessas peças de
desinformação foi transmita em rede nacional e dentro do próprio parlamento
quando um blogueiro citou um suposto esquema de troca de armas nucleares entre
Brasil e Cuba.
Sobre a enxurrada de elementos tóxicos,
acompanham discursos de líderes charlatões especializados na venda de ilusões.
Contam meias-verdades, apresentam falsas soluções simplistas e deixam uma
brecha de silêncio suficiente para que aquelas populações preencham os vazios
com seus preconceitos, temores e angústias.
Com um exército de contas falsas em
redes sociais e uma milícia real pelo mundo digital, a receita está pronta para
transformar aquela versão dos fatos na verdade chancelada para a manipulação. Uma vez mais, nada de novo. Basta ver as
estratégias adotadas pela Stasi ou da KGB para fazer implodir grupos de
resistência com base na mentira, na divulgação de falsos informes e na
destruição de reputações.
No século 21, essas informações
fabricadas de forma deliberada vieram seguidas por um ataque diário contra os
meios de comunicação, numa estratégia orquestrada de deslegitimar qualquer
questionamento.
Constrói-se a legitimidade de canais
paralelos da realidade, enquanto pilares da democracia são abalados numa
estratégia por parte de um grupo que sabia que encontraria terreno fértil. A mentira, portanto, passa a ser um
instrumento de poder. E não é por acaso que, a cada quatro dias, o presidente
Jair Bolsonaro dá uma declaração falsa ou imprecisa, segundo um levantamento do
jornal Folha de S.Paulo. Não são deslizes. É um método.
Ela serve a várias funções: desviar a
atenção das massas e da imprensa para evitar temas estruturais, recriar o
passado para justificar decisões futuras ou simplesmente confundir atores que
não ousariam cruzar essa linha.
A luta contra a desinformação certamente
passa por uma questão de tecnologia e de Justiça. Mas o uso deliberado da
angústia de uma população e o grau de aceitação de tais “notícias” devem servir
de alerta para que se compreenda a dimensão dos problemas que se enfrenta.
Não bastará fechar um site e punir um
difusor de desinformação se temos, ao mesmo tempo, um dos filhos do presidente,
Carlos, confortavelmente publicando uma foto armado: de uma pistola e de um
computador.
O antídoto terá de passar por uma sólida
reação das instituições, por respostas sociais, pelo diálogo, pela aceitação
das regras do jogo democrático e por um modelo que mostre que um caminho
sustentável exige um longo trabalho. Também passa por uma educação que ensine a
pensar, criticar e desconstruir. Não apenas a ser "útil" para o
mercado de trabalho. Uma verdadeira insurreição das mentes
numa sociedade dividida e fragilizada não será construída da noite para o dia.
No fundo, terá de ser permanente. Enfrentar a realidade da manipulação exigirá
lidar com a dor, aceitar o contraditório, questionar as autoridades e construir
uma sociedade em que líderes defendam os direitos de todos. Inclusive de seus
adversários.
Desmontar o atual Zeitgeist será
uma missão tão penosa quanto necessária. Mas a busca não poderá ser por um novo
partido no poder ou pela troca – uma vez mais – de ideologia. Mas uma busca
pela civilização. O debate sobre desinformação, portanto,
não é sobre tecnologia. É sobre sociedade e democracia. E vai exigir muito mais
que um debate na Câmara dos Deputados, regado a meias-verdades e muitas
mentiras.
Autor:
Jamil Chade é correspondente na Europa desde 2000, mestre em relações
internacionais pelo Instituto de Altos Estudos Internacionais de Genebra e autor
do romance O Caminho de Abraão (Planeta) e outros cinco livros.
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