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2 de outubro de 2024

Machado e Clarice!

Clarice Lispector, sempre ela, virou notícia internacional quando a atriz australiana Cate Blanchett a citou e a incorporou na cerimônia em que ganhou o prêmio Donostia pelo conjunto da obra, durante a 72ª edição do Festival de Cinema de San Sebastian, na Espanha. E não eram as frases soltas que circulam indiscriminadamente pela internet, muitas delas longe de serem de Clarice. No mesmo dia, foi noticiado um Machado de Assis revigorado pela Academia Brasileira de Letras, na forma de um mural inaugurado na sede da Instituição para comemorar os 185 de nascimento do Bruxo do Cosme Velho. A "tik-toker de leitura" - é assim que ela é chamada - Courtney Henning Novak, que ficou ainda mais famosa ao revelar sua paixão imediata por Memórias Póstumas de Brás Cubas, visitou o Brasil e o Museu da Língua Portuguesa neste mês. Neste blog constato que houve oito postagens citando Clarice e dezenove mencionando Machado de Assis. Influências explícitas, apenas isso. E ainda dizem que não temos literatura de qualidade. Talvez não tenhamos capacidade de reconhecer nossos escritores de ontem e de hoje, exacerbando o rodriguiano complexo de vira-latas.

Os comentários literários aliviam o tempo que ficou quente, muito quente. E seco. Considerem o calor como alusão ao ambiente ou ao debate político, tanto faz, pois a decepção com a energia gasta é semelhante. Da atual inutilidade do guarda-chuva, resta a mão pesada do guarda, sem a chuva. Mas o artefato faz sombra, boa aplicação ao abandonado instrumento, já que temos cada vez menos árvores em terras campineiras, e creio que alhures também. Em Campinas, a motosserra é o equipamento público mais usado, ininterrupto e eficaz. Bairros menos arborizados reclamavam que o verde é mais evidente em outros, onde eu moro, por exemplo. Agora não. Todos os bairros estão sem o verde, igualados democraticamente sob o sol escaldante no asfalto e no concreto. À sombra de um Machado, aquele que ilumina na literatura, já não há árvores e sombras em que possamos deleitá-lo, eliminadas que foram por outros machados.

Desta vez deixo Lima Barreto quase de fora das reflexões, sem explicações. Ele está novamente sendo lembrado devido à homenagem a João do Rio na próxima Flip (Festa Literária Internacional de Paraty). Isso se assemelha ao resgate que houve com o próprio Lima Barreto. Os dois nasceram no mesmo ano e morreram com apenas dezesseis meses de diferença. Um carregava a cor da pele, sempre julgado a priori. O outro teve de esconder sua homossexualidade, criminosa para os conceitos da época. Clarice e Machado souberam muito bem retratar o mundo e a sociedade em que viveram, com estilos e ferramentas bem distintas. Machado explicitava o dia a dia em seus romances e crônicas, em paradoxo atemporal, tanto é que hoje o lemos pensando ter sido escrito ontem. Clarice poetizou um mundo de inquietudes e angústias com palavras diretas e fortes, em prosa ligeira, o que impressionou a atriz Cate Blanchett. Vissem as cadeiradas políticas de hoje, o que teriam escrito? Mas os poetas continuam poetando e haverá o tradicional Sarau do Batata no sábado, 28 de setembro, às 10 h, na Biblioteca Pública Municipal. Último sábado do mês, último fim de semana antes das eleições municipais em que tendemos a escolher o cinza e não o verde.

Autor: Professor Adilson Roberto Gonçalves – Publicado no Blog dos Três Parágrafos.

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