Deve-se à Constituição de 1988 a
independência do Ministério Público e graças a ela existe a Lava Jato. Alguns
dos larápios apanhados são grandes empresários. Outros, servidores de empresas
estatais. Além deles, o procurador-geral Rodrigo Janot pediu a abertura de
inquéritos envolvendo 22 deputados e 12 senadores. Pela primeira vez desde que
Cabral deixou um degredado no Brasil, a oligarquia política, burocrática e
empresarial foi ferida, exposta e encarcerada.
A Constituição de 1988 e o regime
democrático permitiram o impedimento do presidente Fernando Collor, a posse de
Itamar Franco e, anos depois, a nomeação de Fernando Henrique Cardoso para o
Ministério da Fazenda, iniciando um período de reformas que restabeleceu o
valor da moeda e modernizou alguns setores da vida nacional.
A Carta de 1988 tem defeitos e passou
por mais plásticas que a atriz Kim Novak, mas funciona. Ela é clara: as
eleições presidenciais realizam-se a cada quatro anos e assume quem tiver mais
votos. Assim assumiram Fernando Henrique Cardoso, Lula e a doutora Dilma. Se o
Congresso resolver encerrar o mandato do presidente, assume o vice. Assim foi
com Itamar Franco. Hoje, assumiria Michel Temer.
A Constituição também determina que o
Tribunal Superior Eleitoral pode cassar o mandato de uma chapa eleita e há um
processo em curso nesse sentido. Se as acusações prevalecerem, Dilma e Temer
vão para casa e, em até 90 dias, elege-se um novo presidente, com o voto de todos
os brasileiros. Nada mal. (Caso a cassação ocorra no ano que vem, a eleição
será indireta, votando apenas senadores e deputados.)
Desde a semana passada, com o
agravamento da crise política e econômica, surgiu a ideia de uma reforma do
regime, chegando-se a um parlamentarismo ou a uma excentricidade chamada de
"semipresidencialismo" ou "semiparlamentarismo". Algo tão
vago quanto uma semibicicleta. A proposta foi enunciada,de forma genérica e
superficial, pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Outro defensor da
tese é o vice-presidente Michel Temer, que acumula a condição de pretendente ao
trono (no caso do impedimento) com a de cliente da lâmina (no caso da
cassação).
É golpe.
O parlamentarismo já foi rejeitado
pelo brasileiros em dois plebiscitos, em 1963 e 1993, sempre por maioria
acachapante. Com 77% a 17% dos votos num caso e 55% a 25% no outro.
Corre por aí que semipresidencialismo
replicaria a experiência francesa. O paralelo é falso como um depoimento de
comissário petista. Na França existia um regime parlamentar puro e caduco, até
que, em 1958, no meio de uma guerra perdida e depois de um levante militar, o
general De Gaulle tornou-se primeiro-ministro, com poderes emergenciais.
Passados três meses, ele submeteu um projeto de Constituição ao povo francês e
conseguiu 79,2% dos votos. A reforma de De Gaulle fortaleceu o presidente e
enfraqueceu o Congresso. Ela entrou em vigor depois do referendo, não antes. O
contrário do que se quer fazer no Brasil. (Quem souber o nome do atual
primeiro-ministro francês ganha uma viagem à Disney.)
Em condições normais de temperatura e
pressão, a manobra do semiparlamentarismo é inconstitucional. Ela precisa
buscar na crise a legitimidade da emergência. O que se quer não é copiar as
instituições francesas, mas reciclar uma gambiarra do andar de cima brasileiro.
Pretende-se replicar 1961, quando no meio de uma crise política e militar
aprovou-se em poucos dias o regime parlamentarista para mutilar os poderes de
João Goulart. Foi golpe.
Quando se respeita a Constituição, as
crises ajudam a fazer grandes mudanças. A posse de Itamar Franco e a eleição de
Tancredo Neves são dois exemplos recentes. Havia a crise, preservou-se o regime
e foi-se em frente.
Recuando-se no tempo, o vagão da crise
reformadora entra num Trem Fantasma. Em 1968, uma crise das ruas foi usada por
uma conspiração palaciana para jogar o país na ditadura escancarada do AI-5.
Recuando mais um pouco, chega-se a 1964. O marechal Castelo Branco achava que a
crise colocara-o na Presidência para fazer grandes reformas. As fez, mas a
anarquia militar que cavalgou legou ao país o desastroso governo de Costa e
Silva. Viveu o suficiente para perceber a armação do colapso de sua ditadura
envergonhada.
O caroço do golpe está no desejo de se
dar o poder a quem não tem voto. De Gaulle mostrou que os tinha. Se a ideia é
boa e se Dilma e Temer forem cassados, qualquer cidadão brasileiro pode se
eleger presidente propondo sua plataforma reformista. Durante a campanha
eleitoral de 1994, Fernando Henrique Cardoso elegeu-se propondo reformas,
inclusive a da Previdência, e a fez, com o apoio da CUT.
O semiparlamentarismo daria mais
poderes a um Congresso de 594 deputados e senadores. Deles, 99 têm processos à
espera de julgamento do Supremo Tribunal Federal. São 500 os inquéritos em
andamento, inclusive os que tratam dos atuais presidentes da Câmara e do
Senado.
Texto escrito pelo Jornalista Elio Gaspari para a Folha de SP em 13/03/2016.
Texto escrito pelo Jornalista Elio Gaspari para a Folha de SP em 13/03/2016.
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