Ao se estudar a história particular de
cada país se verá uma variedade de situações e de circunstâncias que aproximam
algumas e distanciam outras. Uma dessas situações diz respeito ao fato de que
alguns países são inovadores, conseguem superar as condicionalidades de um
passado difícil e se modernizam com igualdade, justiça e progresso, enquanto
que outros não conseguem se desenvolver e permanecem prisioneiros das
determinações do passado e se tornam cativos da desigualdade, das injustiças e
do atraso. O Brasil, certamente, é do segundo tipo. Aqui o passado determina o
presente e bloqueia o futuro e os mortos governam os vivos.
O mais provável é que existam muitas
razões para o triunfo do atraso e das determinações do passado no Brasil.
Aqui, apontar-se-á apenas uma: o problema da fundação, da gênese. Maquiavel, ao
estudar o grande historiador de Roma antiga, Tito Lívio, assevera que as
repúblicas mal fundadas tendem a permanecer extraviadas ao longo dos séculos,
como que buscando um caminho na escuridão, e procuram encontrá-lo através da
promulgação de um cipoal infindável de leis, pensando que estas podem consertar
a realidade, mas que sequer entram em vigor. As décadas e os séculos passam sem
que esta república encontre a sua verdade, sem que o povo esteja ao abrigo das
misérias humanas e sem que a justiça, a igualdade e a liberdade sejam frutos
acessíveis para a generalidade das pessoas.
Ainda de acordo com Maquiavel, com
base em Tito Lívio, as repúblicas bem fundadas são aquelas que nascem de um ato
de terror fundante, no qual, o arbítrio dos mais fortes é passado no fio da
espada para fundar a validez da lei originária, alicerçada nos princípios da
igualdade e da justiça. De tempos em tempos, esse ato precisa ser renovado com
a punição exemplar daqueles que tentam violar ou corromper estes princípios.
Sem este ato, os mais fortes não terão freios e exercerão o arbítrio, a
dominação e a violência sobre os mais fracos.
Maquiavel vê atos de terror fundante
exemplares em Moisés, quando desceu do monte Sinai e mandou passar no fio da
espada 22.200 homens por terem implantado a desordem; em Ciro, ao se revoltar
contra os medas e fundar o império Persa e em Rômulo, ao matar Remo para
garantir a fundação e a segurança de Roma. Modernamente podemos ver esses atos nas
Guerras de Independência e de Secessão dos americanos, na Revolução Francesa,
na Revolução Cubana e assim por diante.
Na história do Brasil, o poder
político e suas formas constitucionais e jurídicas sempre foram produtos do
trabalho usurpador das elites econômicas e políticas e expressão de seus
interesses. Em nenhum momento dos processos fundantes desse poder o povo foi
partícipe enquanto sujeito e sempre teve seus interesses e direitos excluídos
dos arranjos legais e constitucionais que se efetivaram ao longo do tempo.
Notadamente, a Independência se revestiu de uma transformação perpetrada por
segmentos que representavam os interesses da metrópole e a Proclamação da
República assumiu o caráter de um golpe do qual, o povo, bestializado, nos
termos de Aristides Lobo, não participou e sequer compreendeu o seu
significado.
No Brasil, o povo nunca foi soberano,
a lei nunca foi igual, a democracia nunca existiu para a grande maioria das
pessoas pobres. As tentativas de refundar o fundar o Brasil, primeiro com
Getúlio Vargas e, depois, com Lula, foram atacadas pela ação corrosiva das
elites, por guerras políticas sem escrúpulos e sem quartel, pela violência,
pela traição e por golpes que visaram perpetuar a ordem da dominação do
passado, manter o presente do povo na miséria e interditar o futuro.
Se o Brasil é um país sem presente por
conta de todos os males que assolam o povo - desemprego, falta acesso aos
serviços de saúde, falta de educação, salários baixos, falta de cultura e de
lazer, pobreza, preconceitos, falta de direitos, violência etc. - os dados da
Revisão 2018 da Projeção da População do Brasil, divulgados na semana passada
pelo IBGE, confirmam que o país não terá futuro.
O presente do Brasil é trágico, sem
dúvida. Mas o seu futuro poderá ser ainda mais trágico. O país está
envelhecendo de forma mais rápida do que se pensava. Em 2039, o número de
pessoas com mais de 65 anos será superior ao número de crianças e jovens com
menos de 15 anos. Em 2060, uma de cada quatro pessoas terão mais de 65 anos.
O problema é que o bônus demográfico
evaporou: os jovens de hoje envelhecerão sem oportunidades, sem emprego, sem
qualificação, sem poupança e, provavelmente, uma previdência razoável. Serão
velhos, pobres e sem assistência e sem direitos. Os jovens de hoje e o sistema
de trabalho de hoje não estão nem bancando sequer a previdência de hoje. O
Brasil ocupa o sétimo lugar entre os países que mais matam jovens no mundo. Em
todos os sentidos, o Brasil está queimando, dissipando, o seu futuro. Os jovens
mesmo estão dominados pela ideologia do consumo. Não poupam e não se previnem.
Não imaginam que amanhã poderão cair e que ninguém lhes dará a mão para se
levantarem.
O Brasil está envelhecendo sem a
infraestrutura adequada para o progresso e sem a infraestrutura para a velhice.
As cidades, os transportes, o sistema de saúde, o sistema previdenciário, a
mobilidade urbana, as estruturas de comércio, nada está preparado para um país
com forte presença de pessoas idosas. Sequer níveis satisfatórios de saneamento
básico existem.
O pior de tudo é que, a partir do
golpe, o Brasil está andando para trás. O governo e o Congresso golpistas estão
empenhados em destruir políticas e programas que vinham contribuindo com a
redução da pobreza e com a sustentabilidade ambiental. Governo e Congresso
estão dominados por grupos criminosos, a exemplo do agronegócio, grupo que não
tem nenhuma consideração com a dignidade humana e com a sustentabilidade
ambiental, com o futuro dos brasileiros e com os brasileiros do futuro.
As diferenças entre ricos e pobres se
tornam cada vez mais abissais, tenebrosas, terríveis. As exclusões históricas,
de raça, de gênero etc., se aprofundam e políticas inclusivas, ou são extintas
ou têm os recursos calcinados. Se as pessoas pobres já não tinham acesso a hospitais,
hoje não têm acesso a médicos. Vivem doentes e morrem sem atendimento. Estamos
entre os países mais violentos e desiguais do mundo. O Brasil está sob a égide
de elites econômicas e políticas criminosas, perversas, cruéis.
Um dos poucos brasileiros que tem a
força, a coragem e a sensibilidade para bloquear esse processo de destruição do
presente e do futuro do Brasil está preso em Curitiba. Os interesses que
prenderam Lula e que querem impedir que ele seja candidato à presidência da
República são os interesses que massacram o povo, que espezinham a sua
dignidade, que decepam o seu presente e o seu futuro.
O povo precisa alimentar um temor
terrível dessa monstruosidade que está sendo feita contra ele. Este temor, que
deve ser o temor pela vida desgraçada que leva à morte, precisa despertar a
clarividência da razão. Da razão que ilumina e que desperta a consciência de
que não há motivo para não lutar. Aliás, de que o principal motivo da vida,
agora, é lutar. E aqueles que têm consciência precisam fazer apelos por
corações irados, por organizações de irados, pela força de gente irada. As
lideranças precisam fazer apelos pela indignação e pela fúria. É preciso
organizar a fúria. Não dá para tratar com bons modos uma elite que trata o povo
com brutalidade.
Os métodos tradicionais de luta não
comportam mais a urgência de um agir mais contundente e corajoso. A vastidão da
tragédia do povo brasileiro deve ser o metro das novas lutas. E que essas
lutas, entre outras coisas, sejam capazes de arrancar Lula dos calabouços de
Curitiba. É preciso consolidar a ideia de que se não querem deixar que o
governo legitimamente eleito de Lula dê ao povo o que é direito seu, o povo tem
o direito de buscar o que é seu com suas próprias mãos.
Autor:
Aldo Fornazieri - Professor da Escola de Sociologia e Política (FESPSP).
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