Dizem que as paredes têm ouvidos. Mas,
na arquitetura rústica e simples do lar de Maria Sileide, elas escutavam a vida
dos expressivos sorrisos e choros das quatro crianças, na sala. Desde aquele
momento, o silêncio tomou conta. A ausência eloquente contagiou a casa. Não foi
o mero atravessar da porta pelo amigo de longa data que sufocou o ar da família
e ofuscou os desenhos animados das crianças. A mensagem que ele trazia era de
que o marido havia cumprido “sua sentença”, como a de um “mal irremediável” descrito
em ‘O Auto da Compadecida’, por Ariano Suassuna. Chico Buarque também abordou a
situação quando embotou lágrima e cimento à poesia “Construção”.
Servente de pedreiro, João Alves da
Cruz não sobreviveu após cair de uma altura de cerca de 12 metros. Ele ajudava
a erguer, com tijolos, os sonhos dos outros que, meses depois, sentiriam, pela
janela, os ares do novo lar (além de uma montanha de prédios à vista). A obra
do edifício residencial em Águas Claras, bairro de classe média alta em
Brasília, onde o servente jamais imaginaria morar, tornou-se cenário da
tragédia que vitimou o pai de família. À época, ele tinha 34 anos. Até então,
suava, diariamente, em cada uma das 14 horas de serviço. Era necessário. Aquele
esforço mantinha o sustento da família com os R$ 622 mensais.
Primeira reação, uma dor, quase
insuportável, apenas contida pelo olhar inocente das quatro crianças que viam,
no olhar da mãe, o desespero. Era como se as paredes tivessem caído. Como
manter o alimento, as roupas e a vida, mesmo que simples, dos gêmeos, à época
com nove anos, do filho de cinco, e da filha mais nova, de um ano e oito meses?
Faltava menos de dois meses para a
família se mudar para Juazeiro (BA). A intenção era ajudar o avô materno das
crianças na roça, projeto que nunca se realizou. Era sofrido, mas Maria Sileide
precisava ir até o local do ocorrido. As pernas estavam incontroláveis, tremiam
o tempo todo na dificuldade de manter-se em pé. Ela lembra que as lágrimas não
secavam ao recordar os nove anos juntos do casal.
“Eu não tenho nem palavras. Quando a
pessoa perde um ente querido ela fica sem chão. Ele era novo, estava com apenas
34 anos”, lamentou. “Fiz a massa, pus cimento, ajudei a rebocar” (Cidadão,
Zé Ramalho).
João Alves da Cruz morreu no dia 31 de
maio de 2011, depois de cair do andaime que montava na obra. A esposa lembra
que a empresa A&A Construtora e Incorporadora Ltda, à época, atribuiu a
culpa ao marido. A versão que lhe contaram foi a de que ele havia sido
negligente ao desprender o cinto de proteção. Ele se desequilibrou e caiu do
quarto andar. Ela preferiu não entrar na justiça nem notificar o sindicato.
Assim, não recebeu indenização.
No entanto, a construtora fez um
“acordo informal” em que pagaria o sepultamento do cônjuge, manteria o salário,
durante tempo indeterminado, à família (sem o reajuste de inflação), e prometeu
comprar uma casa em “qualquer lugar” do país. O apoio da irmã e de outros
familiares fez Sileide deixar a casa alugada em Santo Antônio do Descoberto
(GO), cidade no entorno do Distrito Federal, e se mudar para Montes Claros de
Goiás.
O sentimento de gratidão à empresa é
baseado nesse acordo informal. Com ele, Maria Sileide pôde manter o sustento
dos filhos e da filha nos últimos seis anos. “Eles me ajudaram bastante. A
empresa ficou do meu lado todos os dias”, defende Maria Sileide. Ela diz que um
dos empregados liga, frequentemente, para perguntar como ela tem passado. O
problema se deu, quando, logo após a tragédia, um dos funcionários “recomendou”
que a família não entrasse na justiça.
“Ele disse que quem perderia seria eu.
Fiquei com medo, estava pensando nos meninos, né? pensando em mim e na
família”, conta. Era ele que erguia casas / Onde antes só havia chão (Operário
em Construção, Vinícius de Moraes).
As empresas procuram negociar acordos
informais com o trabalhador ou da família porque, muitas vezes, há conflitos de
natureza financeira. É no que acredita Raimundo Salvador da Costa,
presidente do Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias da Construção e do
Mobiliário de Brasília (STICMB).
“A empresa dialoga com ele (o empregado), pede para não falar com ninguém sobre
o ocorrido, e passa a dar alguma remuneração a esse trabalhador. No final, quem
sai ganhando é o empregador”. São filiadas ao sindicato com 35 mil pessoas.
O presidente esclarece que o
amparo jurídico disponibilizado pelo sindicato procura evitar a proliferação
dos pactos entre patrões e empregados. “A gente se coloca à disposição, mas não
tem como ligar para cada um de nossos filiados. Não temos nem equipe para
isso”, conta.
Trabalho em altura é todo serviço que
possua um potencial de queda de dois metros, ou seja, que esteja a dois metros
do piso inferior. O conceito é definido em lei e defendido pelo Ministério do
Trabalho (MTB). O órgão, por intermédio da assessoria, também forneceu dados
que revelam as categorias mais vulneráveis ao risco de queda com diferença de
nível, não necessariamente de altura. O número se baseia nos acidentes
comunicados.
As categorias com maior número de
acidentes são as de servente de obras (22), pedreiro (20) e de motorista de
caminhão (18). Enquanto essas duas primeiras profissões são vitimadas por falta
de estrutura adequada, a última tem relação com quedas na hora da troca da
carga, conforme explicam os sindicatos dos trabalhadores.
Confira gráfico das categorias mais
afetadas (média anual):
Segundo Salvador, o trabalho em altura
é “extremamente delicado”, justamente porque a maioria dos acidentes fatais
ocorre de lugares mais elevados. Ele mostra que desde 2011, o STICMB registrou
50 acidentes fatais, sendo 37 compreendidos na definição do Ministério do
Trabalho. Veja o gráfico com o número de mortes
registradas pela entidade que representa os trabalhadores da construção civil:
Salvador explica que a quantidade de
vidas perdidas diminuiu após o fortalecimento do diálogo com diversos entes
interessados. “Juntamos trabalhadores, empregadores e governo para buscar
mecanismos que melhorem os procedimentos do trabalho em lugares elevados.
Assim, nós tivemos a criação da NR-35 (norma regulamentadora 35) que trata especificamente sobre o
tema”. A norma define as atribuições das partes para evitar práticas que ponham
em risco o operário. Em março deste ano, o Ministério Público do Trabalho do
Espírito Santo (MPT-ES) produziu uma cartilha com uma história em quadrinhos
para tratar, didaticamente, sobre o tema. (Clique no link para ver a revista n°30).
Além dos que já existem, procedimentos
precisam ser avançados para minimizar os riscos e diminuir o número de
“acidentes” em lugares elevados. Para o presidente da entidade sindical, os
Equipamentos de Proteção Individual (EPI) não bastam para evitar a queda do
funcionário. É importante que as empresas se atentem à utilização do EPI em
conjunto com o EPC (Equipamento de Proteção Coletiva) para sanar o problema. No
entanto, em grande parte dos casos de falecimento, disponibilizados pelo
sindicato, o funcionário fazia uso do EPI, mas a empresa não fornecia os
treinamentos e orientações previstas na NR-35. Confira a fala de Salvador sobre os Equipamentos de Proteção Individual:
Foram as empresas que compunham o
Consórcio Brasília 2014 (as construtoras Andrade Gutierrez S.A. e a VIA
Engenharia S.A.), responsabilizadas pela morte do funcionário José Afonço de
Oliveira, de 22 anos, que despencou de uma altura de aproximadamente 30 metros.
O fato ocorreu no dia 11 de junho de 2012, e, recentemente, as empresas foram
multadas no valor de R$ 10 milhões, por danos morais coletivos. A quantia foi
pedida pelo Ministério Público do Trabalho, que ganhou a causa no Tribunal
Regional do Trabalho (TRT). O consórcio ainda recorre da decisão. “Subiu a construção como se fosse
sólido” (Construção, Chico Buarque).
Segundo o relatório de inspeção,
elaborado à época do ocorrido, que foi acompanhado pelo técnico de segurança do
consórcio, Ronaldo Gonçalves Pires, José Afonço fez uma pausa no trabalho para
beber água e, ao voltar, resolveu passar por um caminho, por onde
“possivelmente” estava acostumado a passar, e acabou caindo. Antes esse
percurso era sustentado por treliças cobertas de maderite, porém, o relatório
descreve que elas estavam sendo retiradas do local. O mesmo técnico de
segurança relata que a área não poderia ter uma “barreira fácil de ser
transposta”, mas um guarda-corpo contra quedas de altura.
O relatório da Superintendência
Regional do Trabalho e Emprego do DF mostra a “ineficácia no isolamento” do
local. No documento consta que as construtoras também pecaram ao supervisionar
José Afonso, que não possuía experiência, era jovem e novo na empresa.
Para o procurador do MPT, Valdir
Pereira da Silva, que ajuizou o processo de danos morais coletivos, a tragédia
que vitimou o jovem pedreiro foi claramente uma falha no mecanismo de
prevenção. Para ele, sempre que há problemas no meio ambiente do trabalho, que
resultam em mortes ou acidentes graves, a omissão é a responsável.
“Eu tenho uma resistência muito grande
em chamar aquilo que ocorreu com Afonço, e com outros, de acidente”, disse
aborrecido.
Laudos produzidos por diferentes
órgãos fundamentam o argumento do procurador. Ele lembra que a responsabilidade
no ambiente de trabalho é dos patrões e dos empregados. No entanto, a
hierarquia estabelecida, a exemplo da construção civil, faz com que os patrões
assumam a obrigação de “vigiar e monitorar” o funcionário. “Isso não significa,
como me disseram nesse caso, que é dar uma babá para cada empregado”.
Segundo ele, é “muito fácil” jogar a
culpa, por eventuais ‘acidentes’, nas costas do empregado. “Se você for
pesquisar cem acidentes do trabalho, você vai verificar que: o culpado (na
visão das empresas) sempre é a vítima. Então isso é um jogo de empurra. É isso
que leva o Brasil a ser um dos recordistas mundiais em acidentes de trabalho”,
completa.
As denúncias de irregularidades nas
obras do estádio foram feitas pela mídia naquela época. Todas giravam em torno
da precarização das condições de serviço de aproximadamente três mil
funcionários. As construtoras foram notificadas, mas, enquanto o MPT atuava
para melhorar as condições do local, Afonço foi vitimado. No mesmo dia o
procurador esteve no local para coletar as provas do chamado ‘acidente’.
“A minha preocupação era, que aquela
situação não se repetisse em relação ao conjunto de empregados da obra.
Lamentavelmente o Afonço morreu, mas é preciso se certificar que isso não
ocorra novamente”, explica Valdir.
Em relação ao caso de Maria Sileide,
que recebeu um acordo informal da empresa em que o ex-marido trabalhava, o
procurador esclarece que os familiares possuem o direito constitucional de
entrar na justiça em busca do espólio. Caso o patrão ameace o trabalhador ou a
família para não entrar com uma ação trabalhista, o procurador afirma que o ato
é criminoso.
“Ele jamais poderia ameaçar o
empregado de ajuizar uma ação trabalhista. O Brasil é um Estado democrático de
direito e repele esse tipo de coisa. Isso se chama constrangimento ilegal”,
ratifica. A reportagem procurou as empresas
citadas, mas não obteve as repostas sobre os acidentes trabalhistas.
Autor: Lucas
Valença - Arte: Camila Fernanda - Edição de vídeo: Henrique Kotnick - Sob
supervisão de Luiz Claudio Ferreira e Katrine Boaventura - Agência Ceub - *
Reportagem vencedora do Prêmio MPT de Jornalismo 2017 na categoria Universitário/Centro-Oeste
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