Diante da gravidade da situação
nacional e da miséria das alternativas que se apresentam:
Nós acusamos o governo interino que
agora se inicia de já nascer morto. Nunca na história da República brasileira
um governo começou com tanta ilegitimidade e contestação popular. Se, diante de
Collor, o procedimento de impeachment foi um momento de reunificação nacional
contra um presidente rejeitado por todos, diante do governo Dilma o impeachment
foi o momento em que tivemos de construir um muro para separar a Esplanada dos
Ministérios em dois.
Esse muro não cairá, ele se
aprofundará cada vez mais. Aqueles que apoiaram Dilma e aqueles que, mesmo não
a apoiando compreenderam muito bem o oportunismo de uma classe política à
procura de instrumentalizar a revolta popular contra a corrupção para sua
própria sobrevivência, não voltarão para casa. Esse será o governo da crise
permanente.
Nós acusamos os representantes desse
governo interino de serem personagens de outro tempo, zumbis de um passado que
teima em não morrer. Eles não são a solução para a crise política, mas a
própria crise política no poder. Suas práticas políticas oligárquicas e
palacianas só poderiam redundar em um golpe parlamentar denunciado no mundo
inteiro.
Por isso, eles temem toda
possibilidade de eleições gerais. Eles governarão com a violência policial em
uma mão e com a cartilha fracassada das políticas de "austeridade" na
outra. Políticas que nunca seriam referendadas em uma eleição. Com tais
personagens no poder, não há mais razão alguma para chamar o que temos em nosso
país de "democracia".
Nós acusamos o governo Dilma de ter
colocado o Brasil na maior crise política de sua história. A sequência de
escândalos de corrupção não foi uma invenção da imprensa, mas uma prática
normal de governo.
De nada adianta dizer que essa prática
sempre foi normal, pois a própria existência da esquerda brasileira esteve
vinculada à possibilidade de expulsar os interesses privados da esfera do bem
comum, moralizando as instituições públicas.
Que os setores da esquerda brasileira
no governo façam sua autocrítica implacável. Por outro lado, a procura pela
criação de uma conciliação impossível apenas levou o governo a se
descaracterizar por completo, a abraçar o que ele agora denuncia,
distanciando-se de seus próprios eleitores. O caráter errático deste governo
foi à mão que cavou sua própria sepultura. Que este erro sirva de lição à
esquerda como um todo.
Nós acusamos aqueles que nunca
quiseram encarar o dever de acertar contas com o passado ditatorial brasileiro
e afastar da vida pública os que apoiaram a ditadura como responsáveis diretos
pela instauração desta crise. A crise atual é a prova maior do fracasso da Nova
República.
Que um candidato fascista (e aqui o
termo é completamente adequado) como Jair Bolsonaro tenha hoje 20% das
intenções de voto entre os eleitores com renda acima de dez salários mínimos
mostra quão ilusória foi nossa "conciliação nacional" pós-ditadura. O
fato de nossas cadeias não abrigarem nenhum torturador deveria servir de claro
sinal de alerta.
Tal fato serviu apenas para preservar
os setores da população que agora abraçam um fascista caricato e saem às ruas
com palavras de ordem dignas da Guerra Fria. Por isso, a cada dia que passa,
percebe-se como este setor da população se julga autorizado a cometer novas
violências de toda ordem. Isso está apenas começando.
Nós acusamos setores hegemônicos da
imprensa de regredirem a um estágio de parcialidade há muito não visto no país.
Diante de uma situação de divisão nacional, não cabe à imprensa incitar
manifestações de um lado e esconder as manifestações de outro, transformar-se
em tribunal midiático e parcial, julgando, destruindo moralmente alguns
acusados e preservando outros, deixando mesmo de se interessar por vários
escândalos quando esses não atingem diretamente o governo.
Essa postura apenas servirá para
explodir ainda mais os antagonismos e para reduzir a imprensa à condição de
partido político. Nesse momento em que alguns inclinam-se a uma posição
melancólica diante dos descaminhos do país, há de se lembrar que podemos sempre
falar em nome da primeira pessoa do plural, e esta será nossa maior força.
Faz parte da lógica do poder produzir
melancolia, nos levar a acreditar em nossa fraqueza e isolamento. Mas há muitos
que foram, são e serão como nós. Quem chorou diante dos momentos de miséria
política que esse país viveu nos últimos tempos, que se lembre de que o Brasil
sempre surpreendeu e surpreenderá. Esse não é o país de Temer, Bolsonaro,
Cunha, Renan, Malafaia, Alckmin.
Esse é o país de Zumbi, Prestes, Pagu,
Lamarca, Francisco Julião, Darcy Ribeiro, Celso Furtado e, principalmente, nosso.
Há um corpo político novo que emergirá quando a oligarquia e sua claque menos
esperar.
Texto do Professor livre docente do Departamento de Filosofia da USP Vladimir Safatle para a Folha de SP.
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