Uma das experiências temporais mais
particulares ao Brasil é a repetição. Ela expressa, de maneira quase didática,
a resistência imperial do poder à mudança e sua imunidade surda a toda pressão
popular.
Um dos exemplos privilegiados da força
de tal repetição compulsiva diz respeito ao ritual periódico de aumento da
tarifa do transporte público. Desde a Revolta do Vintém, lá pelos idos de 1879,
a população brasileira sai periodicamente às ruas contra os preços extorsivos
das tarifas. Desde aquela época, os governos, sejam eles de que partido forem,
respondem à bala.
O resultado final foi muito bem
descrito por Lucio Gregori. Gasta-se atualmente 13,5 minutos de um salário
médio em São Paulo e no Rio para pagar uma tarifa. Em Paris e Pequim, gasta-se
4,5 minutos e em Buenos Aires gasta-se 2,5 minutos.
Esses números resumem bem a
irracionalidade de ser obrigado a aceitar um serviço entre os mais caros do
mundo e criminosamente ruim. O problema não diz respeito ao aumento de tarifa,
mas à aplicação de preços abusivos como se isso fosse uma fatalidade natural e
inquestionável.
Quando os transportes públicos foram
privatizados, no início dos anos 1990, prometeu-se uma melhoria radical da
qualidade e eficiência. De todas as piadas contadas pelo neoliberalismo
brasileiro, essa é a mais sem graça.
Ao explodirem as manifestações de
2013, descobrimos, por exemplo, que, de 2004 a 2012, a quantidade de
passageiros disparou 80% em São Paulo enquanto o número de ônibus em circulação
simplesmente caiu de 14.100 para 13.900. O que não poderia ser diferente, já
que as empresas privadas de ônibus têm, na verdade, apenas duas funções:
fornecer dinheiro para campanhas políticas e rentabilizar seus investimentos.
Não é por acaso que um dos brasileiros
citados no escândalo das contas milionárias do HSBC suíço era Jacob Barata, o
"rei do ônibus" carioca. Enquanto ele transportava a população
carioca como quem transporta gado, sua conta crescia.
Já a situação catastrófica de São
Paulo é conhecida de todos. A começar pelo metrô, que já ganhou o prêmio da
expansão mais lenta do mundo, com atrasos sucessivos enquanto escândalos
milionários de corrupção aparecem em tribunais internacionais e o governo
paulista finge não ser com ele. No município, a acomodação à mediocridade por
parte de um governo que se dizia expressão do "homem novo" fez com
que nenhuma proposta de mudança estrutural (tarifa zero, subsídios, bilhete
metropolitano, descolamento do preço entre metrô e ônibus, reestatização) fosse
sequer realmente discutida.
Diante disso, a população começou uma
jornada de manifestações. Temendo que ela possa servir como estopim de um novo
2013, a Polícia Militar colocou em cena suas práticas corriqueiras de
banditismo institucionalizado contra manifestantes. Provocações, uso
indiscriminado da violência e até mesmo a pérola de colocar explosivos em
mochilas de manifestantes para incriminá-los, como vimos em vídeo veiculado na
internet.
Esta é a polícia paulista: tira
selfies com manifestantes que pedem a volta da ditadura militar e joga bomba de
gás lacrimogêneo contra populares que pedem uma tarifa de transporte
minimamente honesta. No que o secretário de segurança de Alckmin, a ser
confrontado com o fato de até mesmo a imprensa internacional ter noticiado o
absurdo de transformar São Paulo em palco de batalha campal diante de uma
manifestação que transcorria sem violência, respondeu: "A atuação da PM
foi exemplar". É verdade, ela foi um belo exemplo do que a polícia
realmente é e quem são seus inimigos reais.
Que o leitor permita-me terminar este
artigo com um relato pessoal. Quando criança lembro-me de meu pai levar-me a
uma manifestação contra a ditadura militar, em Brasília. Terminamos correndo da
polícia e de suas bombas. Nesta terça (12), tive de parar meu trabalho na
universidade para correr à manifestação e tirar minha filha, uma adolescente de
16 anos, que tinha sido encurralada com suas amigas pelas bombas da polícia.
Como se vê, o tempo do Brasil é o tempo da repetição e da luta desesperada, que
passa de uma geração a outra, contra sua teimosa imobilidade.
Vladimir
Safatle é professor livre-docente do Departamento de Filosofia da USP
(Universidade de São Paulo). Escreve as Sextas. Publicado no jornal Folha de SP em 15/01/16..
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