Do “não matarás” das Tábuas da Lei até as democracias modernas, tenta-se conjugar esse direito inviolável à vida com o direito à liberdade.
Bolsonaro acena para apoiadores no Rio de Janeiro, no domingo. Bruna Prado - AP
Enquanto a CPI da Pandemia no Senado está sendo qualificada como a da mentira, cientistas e especialistas em medicina anunciam uma terceira onda da epidemia, mais grave e perigosa que as anteriores. E isso quando o Brasil está chegando a meio milhão de vidas sacrificadas, 100.000 a mais que em 10 anos de guerra na Síria entre civis e militares.
A pandemia da covid-19 está apresentando um problema filosófico e teológico antigo, mas frente a uma realidade nova. Trata-se de discutir se a vida vale mais que a liberdade. Sem dúvida, o ideal é poder conjugar as duas realidades: viver em liberdade. A covid-19, entretanto, rompeu essa utopia, e os países tiveram que escolher entre salvar vidas ou sacrificar algumas liberdades.
Até agora, a maioria dos países civilizados preferiu impor o isolamento para salvar vidas. O Brasil está sendo uma exceção com Bolsonaro, como foram os Estados Unidos com Trump. O Brasil poderia ter salvado milhares de vidas se tivesse tido um governo que preferisse preservar a vida a renunciar temporariamente a algumas liberdades.
O Brasil tem hoje um dos chefes de Estado mais radicalmente negacionistas, alguém que desde o primeiro momento contestou as medidas restritivas da liberdade, o que levou o Brasil a se tornar o epicentro mundial da pandemia por semanas. Enquanto no resto dos países os governos preferiram sacrificar algumas liberdades para salvar vidas, Bolsonaro não só se mostrou contrário às medidas desagradáveis impostas pela pandemia como ridicularizou aqueles que optaram por defender a vida, qualificando-os de “covardes” e “frouxos”.
Agora que o Brasil poderia estar às vésperas de uma terceira onda da covid-19 mais grave que as anteriores, volta a ser discutida falsa tese de que a liberdade vale mais que a vida.
É fato que, visto de forma abstrata, o dilema existe e é tão antigo como o mundo. Entretanto, diante do grito de “liberdade ou morte”, as sociedades modernas preferiram a vida, renunciando a certas liberdades.
E continua de pé a tese de que nada vale mais que a vida, nem sequer a liberdade. Existe um consenso mundial de que a vida é o valor supremo. Até um dos argumentos contra a pena de morte é que é preferível a prisão perpétua a perder a vida.
Até perante uma doença grave preferimos aceitar restrições a nossa liberdade para continuarmos vivos. É verdade que alguns, num ato de heroísmo, às vezes sacrificam a própria vida para evitar a morte do próximo. Por isso são considerados heróis, porque não existe nada mais precioso que a vida.
Dias atrás, Bolsonaro propôs a seus fiéis e fanáticos seguidores esse eterno dilema sobre a vida e a morte. Afirmou que seus partidários estão dispostos a sacrificar a própria vida para defender a liberdade, que está dando armas à população para defender essa liberdade, e que “seu Exército” não permitirá que ninguém imponha restrições à liberdade para defender a vida.
E, como o presidente é incapaz, mesmo filosoficamente, de conceber o valor real da vida, já que é um cultor contumaz da morte e da violência, voltou a defender que a liberdade de ir e vir, eventualmente restringida por causa da pandemia, vale mais que a vida.
Seria cômico se não fosse trágico o fato de que alguém como ele, que sempre se declarou a favor das ditaduras castradoras das liberdades, apareça hoje como paladino da liberdade. Justo ele que odeia a democracia e os direitos humanos. Sua única filosofia é manter um poder autoritário, inimigo de qualquer tipo de liberdade, mesmo que à custa de produzir um genocídio.
A CPI que apura eventuais responsabilidades pelo genocídio brasileiro nesta pandemia é a demonstração de que Bolsonaro e seu Governo apostaram descarada e criminalmente em sacrificar vidas humanas em nome de um falso e interessado conceito de liberdade, defendido na verdade por medo de perder o poder. Na filosofia bolsonarista, não existe um diálogo possível entre a vida e a liberdade. O poder absoluto se ergue forte e covarde ao mesmo tempo, à custa de ampliar a triste caravana de mortes e dor que podia ter sido evitada com um Governo que, em lugar de cultuar a morte, fosse um responsável defensor da vida.
A humanidade que se move entre os instintos de vida e de morte sempre procurou formas éticas e políticas de tentar conjugar esses instintos básicos. Desde o início das civilizações, os povos tentaram defender a vida como valor supremo. Do “não matarás” das Tábuas da Lei até as democracias modernas, tenta-se conjugar esse direito inviolável à vida com o direito à liberdade.
Nasceram assim as leis e as constituições que impõem restrições à liberdade absoluta para defender o valor supremo da vida. É um difícil equilíbrio destinado, no entanto, a proteger a vida.
E é essa primazia de sacrificar vidas em nome de uma falsa liberdade, símbolo do negacionismo do presidente brasileiro, que deve ser freada a tempo, afastando-o de um poder suicida, o que poderia devolver o país à normalidade de saber sacrificar algumas liberdades individuais para evitar uma hemorragia de vidas humanas. O Brasil aposta na vida, por isso está em sua grande maioria desobedecendo ao presidente em sua postura contra a vacina. Segundo as últimas pesquisas nacionais, apenas 5% dizem que não pretendem se vacinar.
Esse é o ridículo exército de seguidores dos quais o genocida se gaba ―ele que está cada dia mais sozinho e começa a ser abandonado até por uma parte de seus fiéis admiradores, como os evangélicos. O capitão que costuma aparecer arrogante montando um cavalo, desafiando a morte, se revela diariamente como uma pura e patética ficção que começa a se dissipar como uma bolha de sabão.
O
capitão da reserva, afinal, não se importa nem com a vida nem com a liberdade.
Seu único sonho e sua única obsessão são manter seu poder, mesmo que à custa de
aparecer como um novo e triste tirano da história.
Autor: Juan Arias é jornalista e escritor, com obras traduzidas em mais de 15 idiomas. É autor de livros como Madalena, Jesus esse Grande Desconhecido, José Saramago: o Amor Possível, entre muitos outros. Trabalha no EL PAÍS desde 1976. Foi correspondente deste jornal no Vaticano e na Itália por quase duas décadas e, desde 1999, vive e escreve no Brasil. É colunista do EL PAÍS no Brasil desde 2013, quando a edição brasileira foi lançada, onde escreve semanalmente.
Nenhum comentário:
Postar um comentário