Muitos peruanos têm-se
desencantado ante o espetáculo bochornoso de um Parlamento que parecia dedicado
exclusivamente a impedir que funcionassem as instituições e a defender a
corrução!
Fernando Vicente
Fez muito bem o presidente do
Peru, Martín Vizcarra, ao dissolver o Congresso e convocar novas
eleições para o próximo 26 de janeiro, data que acaba de ser confirmada
pelo Júri Nacional de Eleições. E fizeram muito, mas muito bem, as Forças
Armadas e a Polícia peruanas reconhecendo a autoridade do chefe de Estado; não
tem sido muito frequente na história do país que as forças militares apoiem um
Governo constitucional como o que preside Vizcarra; o “normal” seria que
ajudassem a derrubá-lo.
A decisão de fechar o Congresso foi
rigorosamente constitucional, como mostraram diversos eminentes juristas e
explicou ao grande público, com sua lucidez característica, uma das melhores e
mais valentes jornalistas do Peru: Rosa María Palacios. A Constituição autoriza
o chefe de Estado a fechar o Congresso após este rechaçar por duas vezes a
moção de confiança; ao mesmo tempo, obriga-o a convocar imediatamente eleições
para substituir o Parlamento destituído. As duas questões foram cumpridas nesse
caso. Pelo mesmo motivo, não se trata nem de longe de um “golpe de Estado”,
como quis fazer acreditar a aliança entre apristas e fujimoristas, que tinha
maioria simples no Congresso e o havia transformado em um circo grotesco de
foragidos e semianalfabetos, com algumas poucas (embora muito respeitáveis)
exceções. Por isso centenas de milhares de peruanos saíram às ruas, em todas as
cidades importantes do país, para aplaudir o presidente Vizcarra, celebrando a
medida em nome da liberdade e da legalidade, ridicularizadas pela maioria
parlamentar de apristas e fujimoristas.
Como sempre, por baixo e por trás das
discussões legais que sustentam as instituições da democracia, há interesses
pessoais, muitas vezes abjetos, que costumam prevalecer. Para isso existem a
liberdade de expressão e o direito de crítica que, bem exercidos, fazem as
denúncias e estabelecem os limites necessários, determinando as prioridades e
tirando a verdade e a liberdade das trevas em que seus inimigos quiseram
mergulhá-las.
Nesses casos, sem a menor dúvida, ambos
os valores estão representados pela decisão do presidente Vizcarra, e os
genuínos inimigos da verdade e da liberdade são os que até agora sujaram, até
extremos inconcebíveis, o Congresso da República, transformando-o num
instrumento da vingança de Keiko Fujimori contra Pedro Pablo
Kuczynski, que a derrotou numa eleição presidencial que ela pensava ter
vencido: era o que indicavam as pesquisas. Então ela, através do Congresso,
dedicou-se a derrubar ministros e impedir que ele governasse. Por sua vez,
Kuczynski, que muitos de nós considerávamos ser o presidente mais bem preparado
da história do Peru e que acabou sendo um dos piores, achou que aplacava o
tigre oferecendo-lhe cordeiros (ou seja, indultando o ex-presidente
Fujimori da pena de 25 anos de prisão que cumpre por ser assassino e
ladrão). Com isso, fez o haraquiri e finalmente precisou renunciar. Agora
está em prisão domiciliar, investigado pelo Poder Judiciário, acusado de
lavagem de dinheiro.
Provavelmente nada do que ocorreu teria
alcançado tais proporções se, nesse ínterim, não tivesse aparecido o famoso
caso Lava Jato no Brasil, em que a empreiteira Odebrecht e
as “delações premiadas” – isto é, autoconfissões de atos ilícitos em
troca de penas reduzidas ou simbólicas – revelaram que no Peru vários
presidentes, ministros e parlamentares haviam sido comprados pela tristemente
célebre empresa (e por outras também) para favorecê-la com concessões de obras
públicas e outros privilégios. Isto irritou sobretudo os apristas e
fujimoristas, envolvidos nessas sujas maracutaias. E seu pânico aumentou
quando, ao mesmo tempo em que tudo isso acontecia no Brasil, surgia dentro do
Poder Judiciário peruano um grupo de promotores honestos e corajosos
determinados a aproveitar as delações premiadas para revelar a corrupção no
Peru e punir os culpados.
Essa é a razão profunda que está por
trás dos atropelos e ilegalidades cometidos pela maioria parlamentar simples
mantida pela aliança de apristas e fujimoristas, que obrigaram o presidente
Vizcarra a fechar este Congresso e a convocar eleições para substituí-lo.
Tomara, diga-se de passagem, que os peruanos votem no próximo 26 de janeiro
melhor do que nas eleições anteriores, e não mergulhem de novo o Peru em um
Parlamento tão medíocre e obtuso como o recém-desaparecido. Mas as próprias
condições dessa eleição não favorecem a existência de muitos bons candidatos
para ocupar os assentos; o tempo de vida que terão será muito pequeno – cerca
de 16 meses – e, como não há reeleição segundo as novas disposições eleitorais,
os incentivos para os novos congressistas não são nada estimulantes.
Em todo caso, porém, trata-se de um
passo adiante na consolidação da democracia no Peru. Muitos peruanos, ante o
espetáculo vergonhoso deste Parlamento, que parecia exclusivamente preocupado
em impedir o funcionamento das instituições, em defender a corrupção e seus
líderes desonestos, haviam se decepcionado com a legalidade. Para isso serviam
as eleições livres? Agora sabem que, por mais erros que se possam cometer
dentro de uma democracia, numa sociedade livre pode-se trazer à luz tudo aquilo
que funciona mal, e que essa é a grande superioridade das sociedades abertas em
relação às ditaduras.
Gostaria também de destacar o espírito
cívico que levou tantos peruanos às ruas para renovar seu convencimento de que
a liberdade é sempre a melhor opção. Uma das boas coisas que havia no Peru,
apesar do Congresso, era a liberdade de expressão. O jornalismo peruano
funcionou nesses anos expressando a grande diversidade política que existe no
país, e muitas das críticas desta imprensa foram certeiras e impediram que, em
meio à desordem, a legalidade perecesse. Mas um país não funciona apenas com a
democracia. É imprescindível que haja trabalho, que os cidadãos sintam que
existe igualdade de oportunidades, que todos possam progredir se se esforçarem
para isso, e que existe uma ordem jurídica à qual podem recorrer se forem
vítimas de injustiças e atropelos.
Curiosamente, nesses anos de desordem
política, o país é um dos poucos da América Latina que cresceram
economicamente; a classe média aumentou e, apesar dos desastres naturais, o
Peru avança na criação de riqueza e oportunidades. Uma única mancha nesse
panorama: a ideia de que toda mineração é negativa e que é preciso
combatê-la para que não destrua o meio ambiente. Isso é um absurdo, mas tem
penetrado na sociedade além dos demagogos da extrema esquerda que o promovem.
E, ao mesmo tempo em que isso ocorre, cresce a mineração ilegal – ela, sim, uma
ameaça gravíssima à saúde ecológica de um país. Tomara que, livre desse
Congresso repelente e das desordens que auspiciava, a democracia peruana comece
também a funcionar dentro de uma legalidade e uma liberdade dignas desses
nomes.
Autor:
Mario Vargas Llosa: Direitos mundiais de imprensa em todas as línguas
reservados a Edições EL PAÍS, SL, 2019. © Mario Vargas Llosa, 2019.
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