Construir
uma escola que promova permanente reflexão sobre os valores pessoais e sociais
de cada um, desde a mais tenra idade, para que essas crianças possam, na idade
adulta, ter uma postura transparente e coerente com seus valores. Essa é uma
das ideias defendidas por Roberto Francisco Daniel, mais
conhecido como padre Beto. “É preciso ensinar as crianças a pensar
sobre valores que elas queiram viver, e a transparência, a veracidade, ou seja,
a ética”, afirma. Nesta entrevista, o filósofo discorre sobre a crise
política enfrentada pelo Brasil e as prováveis causas da falta de ética da
classe política e da sociedade. Padre Beto diz que a escola não forma seres
éticos, mas somente mão de obra técnica e que o atual momento servirá como
depurador da classe política. “Este é um momento muito fértil. Para onde
caminharemos, não sabemos. Mas acredito que hoje caminhamos para um
amadurecimento.”
Formado
em direito, história e teologia, com doutorado em ética pela Universidade
Estadual Ludwig-Maximilian, de Munique, na Alemanha, padre Beto exerceu o
ministério de sacerdote na Diocese de Bauru por 14 anos. Em 2013, foi
excomungado pela igreja católica por ter refletido livremente sobre a moral
sexual cristã. Hoje se dedica à Igreja Humanidade Livre, fundada por ele e
sediada em Bauru, e às aulas de filosofia em instituições de ensino superior.
Também é articulista de vários jornais no Estado de São Paulo.
O
que é ética?
Ética
é uma reflexão sobre valores em busca da felicidade. Eu sou ético a partir do
momento em que sou transparente, ou seja, eu não sou falso, eu sou verdadeiro
nas minhas ações. Essas ações, porém, são orientadas por valores que eu escolho
à medida que vou agindo e refletindo sobre essas ações.
E
qual o objetivo da ética?
É
a felicidade. Lembrando que felicidade é a constatação de que minha vida
construída por meio de ações é uma vida que tem sentido e tem significado. Com
essa definição, a ética é uma postura de transparência, mas também uma postura
de coerência com meus valores. Então, nós temos diversas linhas éticas, ou
diversos comportamentos éticos. Eu posso adotar uma ética capitalista, posso
adotar uma ética cristã, posso adotar uma ética humanista, tudo depende dos
valores que eu escolho para minha vida. O importante é que essa ética seja adotada
na transparência. Caso contrário, eu me torno uma pessoa “antiética”, o que
define principalmente a ética é a veracidade das minhas ações e coerência com
meus valores.
Como
o senhor avalia a ética hoje no mundo da política?
Eu
avalio que hoje estamos em uma sociedade incapaz de refletir eticamente. Nós
não fomos educados para isso. E para entendermos essa situação nós temos que
ter uma memória histórica. Depois do golpe militar, por exemplo, nós tivemos
uma reforma de ensino muito radical, na qual as matérias da área de humanidades
foram eliminadas. E foi adotado um sistema de ensino para a criação de mão de
obra técnica. A partir daí, nós criamos gerações que não pensam de forma ética.
É bem claro que, antes dessa reforma de ensino, nós vivíamos na sociedade da
moral. Uma sociedade da moral é uma sociedade que tem normas claras e
definidas, em que também as pessoas não pensavam eticamente, não refletiam
sobre os valores. Apenas aceitavam valores impostos pela sociedade. Então, não
havia a necessidade da reflexão ética. Com a democratização no Brasil, nós já
não vivemos na sociedade da moral. Nós vivemos em uma sociedade onde existem
moralidades, ou seja, uma liberdade de escolha. E aqui se faz necessário que as
pessoas reflitam eticamente. Acontece que as gerações formadas nessas escolas
técnicas são pessoas incapazes de refletir eticamente. Elas não foram educadas
para isso. É claro que as pessoas podem evoluir e isso se reflete na política.
A política no Brasil é formada por pessoas que não tiveram uma educação ética,
ou seja, uma postura transparente e coerente com os seus valores. Então, o que
predomina na política brasileira é o caminho apontado por Maquiavel, em “O
Príncipe”: atingir os objetivos e não se importar com os meios. E isso
demonstra uma falta de transparência muito grande.
É
possível falar em ética hoje no Brasil?
Acredito
que hoje não é possível falar em ética na sociedade brasileira. O que
precisamos é de uma nova escola, um investimento maciço em uma escola que seja
de período integral, e que todas as crianças estejam na escola. É preciso
ensinar as crianças a pensar sobre valores que elas queiram viver, e a
transparência, a veracidade, ou seja, a ética. Hoje, não podemos falar em ética
em nenhum nível do Brasil. Porque a sociedade brasileira não sabe o que é
ética, e educa as suas crianças a serem antiéticas. O que importa é educar as
crianças para que elas sejam convenientes às outras pessoas; falar não o que se
pensa, mas falar aquilo que vai agradar às outras pessoas. E essa é uma educação
que leva a pessoa a ser antiética. Hoje, infelizmente, vivemos em uma liberdade
muito grande, mas em uma sociedade onde as pessoas não estão refletindo
eticamente. “Hoje estamos em uma sociedade incapaz de refletir eticamente”
Como
o senhor vê o atual momento político?
A
avaliação que faço do atual momento político é um momento de crise. Crise no
sentido positivo da palavra. Crise significa mudanças, transformação. O momento
político no Brasil é um momento para o povo avaliar que a classe política não tem
atendido às necessidades da população. Há um processo de desmascaramento dessa
política maquiavélica e de um anseio de novos políticos e que sejam éticos e
que tenham uma nova postura diante do seu eleitorado. E que sirvam aos valores
republicanos que estão na Constituição. Este é um momento muito fértil. Para
onde caminharemos, não sabemos. Mas acredito que hoje caminhamos para um
amadurecimento.
As
pessoas exigem mais ética, especialmente na política, mas elas ajudam?
As
pessoas não foram educadas para refletirem eticamente. Exige-se do político uma
postura ética, mas as pessoas no dia a dia não refletem eticamente e não
possuem uma linha clara. As pessoas caminham conforme as situações, sem
refletir sobre suas escolhas e seus valores de vida. É preciso uma mudança de
mentalidade, mas isso só irá acontecer se houver um esforço das instituições,
como família, escola, Estado e religião, em um debate sobre o que é ética e um
exercício da reflexão ética. Caso contrário, a sociedade brasileira irá
continuar a ter posturas contraditórias com um discurso que defende
determinados valores, mas com uma prática que não condiz com esses valores.
Quais
os avanços éticos na política e na sociedade após o impeachment?
O
impeachment que tivemos foi mais um jogo de poder do que uma cobrança ética.
Não avalio o impeachment em si como um avanço para o amadurecimento ético da
sociedade. Acredito que a sociedade ficou polarizada, e uma polarização
extremamente superficial, entre pessoas que amam o PT (Partido dos Trabalhadores)
e as pessoas que odeiam o PT. E isso é muito ruim, pois isso é muito
superficial. O que deveríamos ver são as contradições do PT, avaliar essas
contradições, como também analisar os valores e contradições de todos os demais
partidos políticos. É necessário que haja um entendimento da sociedade que,
apesar de sermos divididos em classes sociais, temos que pensar em um bem
comum. Esse deve ser o valor maior.
Como
o senhor avalia a Lava Jato?
A
Lava Jato contribui para o processo de desmascaramento da política exercida nos
dias atuais, e que era necessário ser desmascarada. Então, a Lava Jato tem essa
consequência de atingir determinados setores da classe política. Mesmo
atingindo um setor da classe política, ela consegue mostrar para o povo que uma
boa parte da classe política não esta atendendo às necessidades que temos em
nosso País.
Há
uma explicação para tantos escândalos?
Sim,
há uma explicação. O que posso entender é que as pessoas que estão envolvidas
na política usam a máquina do Estado para o seu próprio benefício. É uma ética
individualista, mas sem reflexão. Ninguém tem refletido sobre as consequências
dessas ações individualistas e ninguém está pensando na felicidade. Cada um
pensa no seu benefício imediato. Isso é uma ética adotada de forma
inconsciente, sem reflexão, fruto de uma educação que não abordou a questão
ética. Ninguém pensa que quando há o desvio de bilhões de reais, esse dinheiro
poderia ser investido na saúde, por exemplo, e, com essa atitude, há pessoas
que morrem por falta de atendimento médico. O que temos são pessoas que
usufruem do Estado por meio de falcatruas, propinas para o benefício próprio e
um benefício imediato, sem pensar na felicidade. “O momento político no Brasil
é um momento para o povo avaliar que a classe política não tem atendido às
necessidades da população”
Sempre
existiu corrupção. Por que então tanta gente tem saído às ruas para se
manifestar?
Sim,
sempre houve corrupção. Mas hoje há mais liberdade de expressão e um maior
acesso as informações, o que não havia em outras décadas no Brasil. Hoje as
pessoas têm o anseio de se expressar e se manifestar. A questão é a permanência
dessas manifestações e o povo não deixar de se manifestar por meio das redes
sociais e das ruas. Entender que nós estamos em um processo de purificação da
democracia e isso deve levar à união e à reflexão ética das pessoas e não
somente às polarizações superficiais. As manifestações são altamente benéficas,
seja de qual lado forem. O importante é que as pessoas entendam que os
objetivos devem ser a construção de uma sociedade feliz, uma sociedade que
tenha sentido e significado para todos e na qual as pessoas possam ter qualidade
de vida.
O
senhor vê alguma saída para a crise?
Eu
vejo a saída da crise. Essa crise vai ter que ter um término, mas qual vai ser
a consequência após a saída da crise que é a grande questão. Espero que essa
crise política que estamos vivendo venha a punir as pessoas que agem com
corrupção, e que novas pessoas entrem para a classe política com uma nova
mentalidade. Uma mentalidade de ser transparente frente ao seu eleitorado,
frente à sociedade, com valores claros e bem definidos.
É
possível imaginar um governo livre de corrupção nas próximas décadas?
É
possível pensar em um Estado, em um governo honesto. Ou com um grau de
honestidade muito grande. Basta à sociedade amadurecer eticamente para
fiscalizar seus políticos. A própria classe política, porém, também terá de ter
uma postura de transparência total e adotar valores claros e definidos. Nós
temos isso em outros países mais evoluídos democraticamente. A democracia é um
sistema difícil, mas é o único caminho para o amadurecimento ético. Não podemos
esquecer que estamos vivendo a democracia desde 1985, o que é recente
historicamente. E estamos em um momento decisivo e importante que é o momento
de purificação dos governos que estão aí. Então, é necessário que a sociedade
pense, reflita em tudo que esta acontecendo, sem o calor das emoções, mas
raciocinando e, principalmente, raciocinando sobre a própria postura ética.
Publicado
no JM Notícias em 05/06/2017.
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